domingo, 28 de novembro de 2010

Entrevista sobre Literatura com a Profª. Drª. Silvina Carrizo

Entrevista realizada com a Professora Doutora Silvina Carrizo, docente do Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas da UFJF.
Possui graduação em Licenciatura em Letras - Universidad de Buenos Aires (1992), mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1997) e doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2004). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: identidades, latino-americanismo, indigenismo, literatura brasileira, a narrativa de 1930 e as suas relações com a contemporânea.

Obs.: Esta entrevista foi concedida ao blog Cultura a +, inscrito no endereço [www.donraphaelreis.blogspot.com], no dia 05/10/2009.

Raphael Reis: Qual é a importância da leitura e da literatura para uma sociedade?

Professora Silvina: Eu diria que já quando nascemos e abrimos nossos olhos somos ensinados para ler, olhar é uma forma de ler os sinais e signos do mundo. Nossa civilização tem-se focado demais na prática cultural de ver, olhar: formas da leitura. Talvez seja por isso que nos impressionam tanto as histórias de cegos e da cegueira: Tirésias, Édipo, e romances tão instigantes como Sobre héroes y tumbas de Sábato e, o mais recente, Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, entre outros tantos.
A leitura que a Literatura possibilita é ainda de outra índole. A operação que a Literatura faz em nós leitores diz respeito a formas de sentir e ver o mundo através da imaginação. É uma atividade do prazer, porém de um prazer vinculado à atividade cognoscitiva e dos sentidos trabalhando juntas numa maior aproximação à realidade, ao mundo, aos seres humanos. Retiro-me da sociedade para ler um livro, e o livro me devolve à sociedade por outro caminho, aliás, me atreveria a dizer que volto à sociedade ainda melhor, um ser humano melhor.
A arte de contar histórias, de condensar pensamentos, ações, sentimentos não tem data, entretanto a partir do momento em que se torna uma experiência isolada com a chegada da tecnologia da escrita, o leitor e o livro configuram uma experiência única. O mundo se transforma numa infinitude de experiências que só cobram sentido a partir desse ato corporal de pegar o livro com as mãos, sentados, encostados, na cama, na grama, na areia, de ficarmos sozinhos horas lendo folhas de papel costuradas, com tapas diferentes, cada vez mais maravilhosas, esse objeto livro... Cada leitor, todos nós, decidimos como num ritual o momento em que abrimos o livro, nós nos abrimos ao outro, nos entregamos, nos deixamos atravessar pelo sentido da experiência que esse outro, o autor, nos proporciona como uma oferenda. Em comunhão lemos, no entanto em solidão. Se perdemos a experiência do narrador tradicional, essa possibilidade coletiva ente a voz e a audição atravessada pela história da comunidade, ganhamos ao atingir a solidão, nesse mundo de simulacros no qual parece que nunca podemos chegar a nós mesmos. Ganhamos, digo, quando atingimos a solidão. Esse nosso lar que nos confronta com nós mesmos, com a vida, com os outros, com o mundo, com a imaginação, com a realidade.
Faz pouco tempo assisti na TV um documentário sobre a história da Palestina, num momento passam uma gravação ao vivo de um cinegrafista amador: depois de uma das tantas intifadas do povo palestino — explica a voz em off — na seqüência das imagens, o exército israelense tem ordens de quebrar os ossos dos revoltados com pedras. Ao assistir essas cenas é impossível não chorar: como viver com isso? Como ser feliz com isso? A Literatura tem nesse sentido um papel exemplar, mediador, pedagógico, liberador nas nossas sociedades, pode contribuir para re-pensarmos nossa condição humana, como na bela epígrafe de Ricardo Piglia no seu romance Respiración artificial, epígrafe de T.S. Elliot, que diz algo assim: “Tivemos a experiência, uma aproximação a ela, pode nos devolver o sentido”.
As pessoas lêem em diferentes lugares, em variadas posições corporais, em diferentes horas do dia, porém todos carregamos o livro que estamos lendo o dia todo, levamos ele no nosso corpo, na nossa cabeça para o trabalho, para o supermercado, para o consultório médico. O livro fica em nós, cobra vida.
Quando as pessoas se reúnem para lerem em voz alta poesias, quando uma criança escolhe um livro numa feira de livros numa escola, quando alguém não pode ir dormir sem antes ler 10 minutos o romance que comprou na livraria, devemos ficar atentos e cheios de esperança. Pois é assim, na solidão, que a imaginação trabalha, e sem imaginação, na há mudanças.

Raphael Reis: Atualmente, percebe-se um diálogo cada vez mais profícuo entre História e Literatura. O que torna importante este encontro?

Professora Silvina:
Acredito que esse diálogo entre História e Literatura se tornou mais profícuo a partir das mudanças estruturais que se sucederam, mais ou menos, em torno da década de 1980 com a queda do muro de Berlim; a transição democrática de vários países do mundo, inclusive da América do sul; a ascensão ou maior visibilidade das minorias, e os novos processos migratórios e diaspóricos.
A Literatura, nesse sentido, desenvolveu um papel transformador e liberador sobre as historias esquecidas e sobre aquelas ignoradas pela História com maiúscula, as Histórias oficiais. De fato as próprias formas literárias metamorfosearam-se, criando uma hibridação de gêneros (o testemunho, diários de cárcere, a auto-ficção, o ensaio, as novas autobiografias, o chamado romance pós-moderno, entre outros) e permitindo que um leque imenso de enunciações puderam vir a tona e acrescentar para o mundo milhões de histórias. As Crônicas de sidario de Pedro Lemebel, por citar um exemplo, são paradigmáticas ao respeito. O gênero crônica se esfacela e é, por sua vez, redimensionado a partir do discurso histórico enunciado por uma voz urbana, homossexual que narrativiza a vida nas ruas do Chile da ditadura.
Ao mesmo tempo, o vínculo novo entre Literatura e História criou também possibilidades de re-leitura das Histórias Oficiais, tentando fazer ressurgir aquelas vozes antes silenciadas, podendo captar momentos chave da experiência histórica num sentido mais íntimo e mais humano, dessa forma novas personagens apareceram de Tiradentes até Zumbi dos Palmares, de Mariano Moreno até Colombo. Novos autores israelenses, turcos, afegãos ou da Europa do Leste ficcionalizaram trechos das histórias dos seus países como uma forma de dar sentido a experiências traumáticas sob o poder da ironia e do humor. Abril rojo de Roncariolo e La hora azul de Cueto narram, sob formas diferentes e pontos de vida antagônicos, esses anos de Sendero Luminoso e a vida no Peru; O sub-comandante Marcos e Paco Taibo II escrevem a quatro mãos o romance Mortos Incômodos (falta o que falta) numa procura de preencher os vazios da história dessas últimas quatro décadas de México.
O mundo, nesse sentido, ficou mais largo e mais próximo, as verdades menos absolutas; as histórias — paradoxalmente — mais verdadeiras.