Edição nº 1, maio de 2011



EDITAL 01/2011

Poesias Selecionadas
A Vida do Mendigo



Sentado no chão
Na porta da igreja
Havia um olhar naqueles olhos
embora fosse indiscernível
Um cheiro cáustico agredindo
os olfatos sensíveis de gente insensível
Mas não há como culpá-los
O cotidiano é insensível
A vida mesma o é
E aquele cheiro cáustico...
Insuportável!

Certamente um corpo havia
Mais que pobre
Mais que miserável
Quase inumano
Quando mesmo a humanidade termina?
Seria aí,
quando ninguém te pode desejar?
A piedade me engasgava
Parava-me à garganta como fumaça intragável
E uma lágrima impotente escorria
seguida de outras...
A pele e os trapos são um só naquela fisionomia triste
Mas é ridículo que eu chore
Ele mesmo não chora
Não o vi chorar
Deveria rir de mim e dizer-me:
Piedoso impotente,
pro inferno suas lágrimas!
Sim,
pro inferno nós dois!
Assim terei o meu descanso
e você retoma a sua vida
como, aliás, o fará
dentro instantes

Mas não lhe ocorreriam essas palavras
E nem esse tom audacioso
Sua pele grossa
Seu rosto sujo
Seus pés cascudos
calçando chinelos gastos
E se Van Gogh o pintasse...

Seus lábios secos
Sua boca muda
Sua blasfêmia abafada
E se Drummond o dissesse...
Ainda assim indiscernível

Desconheço sua dor
Suas manhãs
Seus fins de tarde
Seus céus noturnos e suas bocas de lobo
Suas calçadas
São todas alheias a mim

Sua cachaça
Seu chão frio
Seus papelões
A madrugada
O desprezo dos que passam,
o medo das crianças,
não cortam a minha carne

Se ele nos odeia
Se ele nos perdoa
Se a sua boca amarga
Se é João ou José

Resta pouco entre nós
além de um silêncio expressivo
Sua miséria é toda um mistério
Ele passa sobre mim um olhar passivo,
displicente e manso
Há algo de cinza no castanho dos seus olhos
Uma camada cinzenta
Nossos olhares se cruzam
Ele sabe que o observo,
mas não afeta a sua mansidão
Parece permitir-me
Tenho mesmo a impressão de que diria:
Contempla!

Audacioso e digno
Sua existência toda é um mistério
Um mistério miserável



Emerson Ferreira Rocha: Doutorando em Sociologia pela UNB.

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A Menina e o Tempo

Lá aonde se espera a vida
Aonde as feridas são indolores
A menina aprisionada no tempo
Faz soprar, nos céus, os ventos da mudança

Enquanto as árvores não crescem
E ainda pulsa a cor da esperança
Tenha, ao toque das mãos pequenas
A maciez dos dias amanhecidos

Quando as crianças choram,
Alguém as olha por detrás das nuvens;
Protegendo-as das lágrimas que deixam marcas,
Que são logo transformadas em chuva.

E que de chuva encharca
A terra que ainda não foi semeada
Brotam, mesmo que silentes,
Nos olhos de quem ainda não cresceu
Ao se  viver,  desejando ou sentindo
O sol que ainda vai nascer.
Maria Regina de Souza: Graduada em Psicologia pela Universidade Católica de Petrópolis e Especialista em Psicanálise pelo Centro Superior de Ensino de Juiz de Fora.




- Quem é você?
Perguntou a moça bonita com olhar de mormaço, feito Capitu
Respondi: sou um sonhador...
Daquele que fala com estrelas como Bilac.

 - Quem é você?
Perguntou o senhor curvado, de bengala e pincenez, feito figura de Machado
Respondi: sou um crédulo...
Acredito na solidariedade, no amor ao próximo, como Cristo.

 - Quem é você?
Perguntou a mulher da noite, de batom e rasgo na saia, feito Salomé
Respondi: sou um vendedor
De ilusões, sonhos, esperanças, feito Pessoa, Bandeira, Drummond.

 - Quem é você?
Perguntou a garotinha de cabelos encaracolados, feito anjo de Botticelli
Respondi: sou muitos em um só
Sou alegre e triste, sou feliz e infeliz
Sou bom e sou mesquinho, sou tudo e sou nada
Enfim, minha criança
Sou, simplesmente,
Um poeta.
Maria Conceição Pimentel de Souza: Licenciada em Letras pela faculdade Estácio de Sá do Rio de Janeiro e professora do ensino primário em Manaus (AM).
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Dadaísmo
Deus, dádiva divina.
Diabo, dantesca danação.
Dúvida? Dolorosa dúvida.
Dívidas, damas, decotes, danças, dramas. Dogmas.
Datas, debates, decadência débil do dia deficiente, do déficit, da demissão, do desemprego diplomático.
Dejetos deselegantes danificando dias divinos. Dióxido.
Delírios dolorosos, demasiados desejos.
Drástica decisão. Delinqüir? Dedicar?
Defuntos debaixo da dança decúbita de deuses defeituosos, deslumbrados, desfilam depressa... Dióicos desalmados.
Debochados, deglutem damascos... defecam demônios. Defendem-se, DIREITO!
Direito doido, DEUS DOS DESGRAÇADOS, degrau desajustado.
Demora, demora, demora...
Desgraça disfarçada, democracia denegrida.
Degele, delete, deixe... depois defina.
Desabafos desmanchados... dedução.
Declínios despidos.duram dois, dez, duzentos.
Dons de dentro, descrevem desmaios deliciosos.
Debandar? Deitar? Deprimir?
Delinear! Decerto divórcios.
Direção? Direita.
Esquerda depois.

Diana Michaela Amaral Boccato:


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Canção de um Tempo

Tudo me foi passageiro...
O amor passageiro
a cama passageira
os beijos passageiros...
Também passageiro foi
o coração que não é meu,
a vida que não é minha
e nem sei a quem pertence!
Minhas mãos que falam poemas
são minhas... Sim, estas são minhas,
ao cunhar no papel os meus sentimentos...
O grito da poesia é todo meu,
na dor ou na alegria,
patrimônio inestimável, só meu,
bem maior que a mim pertence...
Trafego estradas desconhecidas
O sol não me pertence
a paisagem não me pertence
o canto dos pássaros
também não me pertence...
Nem a casa onde nasci me pertence!
Passageiros, prazeres passageiros...
A angústia que explode dentro de mim
esta sim, a mim pertence,
e ninguém dela faz questão...
Destilo a gota do sofrimento
mergulho fundo nas águas frias...
O café da manhã é frio
O pão também é frio
mas as mãos servas que o sovaram
antes mesmo do sol nascer
estão quentes e me alimentam...
A mocidade foi transitória
como a carícia de um tempo que findou.
A velhice solitária é como um soco
intransferível a arder-me na face!
Tudo na vida é provisório
na travessia silenciosa que fazemos,
um a um, peregrinos que somos
nesse espaço de sombras
onde habitamos nus!

Amélia Marcionila Raposo da Luz: escreve contos, crônicas, poesias e trovas sendo premiada em todas essas categorias. Participa de concursos literários com publicações em agendas, periódicos e antologias diversas no Brasil e exterior. Membro de diversas entidades culturais.  Trabalha a poesia na sua oficina de versos, uma das causas da sua vida. Livro solo: Pousos e Decolagens (poesias) e outros em construção.
Contos Selecionados
A Alma, Oceano e Solidão

As ondas vêm, resvalam em meus pés, novamente tornam para seu leito mar. Sou tão pouco comparada ao mar, ao oceano gigantesco que me é exterior. Quero provar do mar para sentir este infinito em mim. Provo o salgado gosto do universo. Mar que muitos perigos guarda em si, leve-me consigo, deixe-me ser mar também. Penetre em meus pulmões e insira-se em mim, infinito. Não quero mais ser carne, sentimentos e dor. Quero ter a força dos oceanos, ondas gigantescas que afundam navios. Quero ser força da natureza. Poseidon me conceda o domínio dos mares, dá-me seu tridente e o poder sobre os oceanos. Lanço-me nas águas e penetro na imensidão outrora inacessível.  Quanto mais distante da costa, quanto mais fatigados os braços de nadar, mais confio que me será possível ser parte desse azul. “Corpo desfaça-se de minha alma, liberte do invólucro indesejável meu espírito e deixe-o provar o sabor de ser infinito”. Grito quase sem fôlego, mas o mar não quer me tragar, rejeitou meu corpo e devolveu-me novamente à praia. Minúscula, agonizante, com os pulmões queimando por ter absorvido a água salobra, sinto a areia sob meu corpo arranhando-me a pele. O sol aquecendo o corpo hirto de frio. Fui rejeitada pelo mar, fui acolhida pela terra. Levanto cambaleante. Passos trôpegos, incertos, indecisos… Aonde ir? Não tenho morada neste solo. Fui repudiada pelo mar. Será que Zéfiro pode permitir que acaso nos céus possa habitar? Não quero ser humana, quero ser estrela, quero ser cometa, quero ser universo, que guardo em mim algo tão grande que não encontra lugar neste corpo diminuto e frágil. Corpo que não tem forças para lutar e desiste do mar, dos céus e resigna-se a terra. Arrasta-se sem direção, nau à deriva, não há portos em que possa atracar. As roupas encharcadas colam-me ao corpo. Respiro com dificuldade. Não há caminhos para lugar algum, nem lugar algum que tenha caminhos livres. Todas as rotas são vigiadas, estou presa, mesmo que, aparentemente possa fazer tudo, na realidade nada posso ou ouso fazer. Tenho as mãos e os pés atados. Confinada, a mim mesma. Prisão perpétua do espírito. A única saída do cárcere é a morte. Mas morrer é muito mais difícil do que aparenta. Quando mesmo Hades fecha os portões do reino inferior, onde pode estar um ser tão sozinho, que ao menor lampejo de esperança, atemoriza-se e retrai-se? A Morfeu prometi o espírito, mas, nem mesmo ao senhor do Sono, foi minha  alma de grande valia. Também este me expulsou de seus domínios. Por todas as divindades rejeitada, por todos os homens desprezada, sou um ser que não encontra abrigo. Nômade, só vê estradas, não há rumo, nem destino. Chronos piorou-me a pena, concedeu-me vida longa, e o sofrimento, que se estende por uma vida, parece-me eterno. Por que é tão difícil? Por que tudo é tão infinitamente difícil? Por que todas as portas estão trancadas? Por que não há maneira de quebrar estes grilhões que me acorrentam? Que há comigo, que espécie de ser ignóbil e mesquinho sou? Por que não há quem se apiede de mim? Por que não há quem me responda estas questões, que me parecem irresolúveis? Mítica história, que na verdade é floreada de elementos de sonhos, não sou eu realmente. Sou muito mais irrisória, sou muito mais repugnante. Se muitos sentimentos se confundem em mim, reconheço o maior deles: o medo. O pavor, que me consome, a principal corrente que me pesa. Há chaves para os cadeados que me encarceram quando nasci um ser totalmente desprovido de coragem? Assim calo-me e aceito, o que me dizem que é certo, os caminhos que devo seguir, mesmo que não sejam meus caminhos, pois o que queria mesmo era abrir estradas por onde jamais ousaram andar os homens, erigir pontes para cruzar os rios de dúvidas em mim. Mas não me é dada a oportunidade de dizer o que sinto, o que penso não tem nenhuma importância.  Ergo-me, retomo as forças e aos berros maldigo céus e infernos. “Nemo me impune lacessit” respondo ao mar. “Ninguém me fere impunemente”, repito baixinho. E retorno para minha vida medíocre.
Abro os portões, estão todos preocupados comigo, não digo o que ocorreu. Mas eles adivinham. Sempre adivinham.  Minha mãe põe-se a chorar. Agora, sou carne, me comovo. Prometo que não, mas penso que sim. Será sempre, eternamente, assim. Mas sei que na verdade tudo se baseia na minha anuência. Eu consenti com tudo isso, foram realmente minhas escolhas. Tenho de responsabilizar-me por elas. Mesmo que me causem asco e não me reflitam. Por que assenti em seguir ao convencional e renegar minha autenticidade, sofro assim.  Mesmo sabendo que « Il y a à parier que toute idée publique, toute convention reçue, est une sottise, car elle a covenue au plus grand nombre »* Queria ver-me livre desta coisa que me pesa no peito. Mas esta dor que me parece insuportável, é-me por vezes a única forma de suportar a vida. Embora eu caminhe por estes vales de sombras, foi neles que aprendi a andar. Não consigo, não posso, não sei percorrer planícies ensolaradas, onde não haja espinhos que me firam a cada passo. Necessito desta dor que me é algo essencial agora. Minha prisão cuja cela na verdade está aberta, como o pássaro que, de tanto viver confinado, desaprendeu a voar. É a mim a quem culpo de proporcionar a mim mesma uma vida desprezível. Sou eu a quem acuso de ser meu algoz, é de mim que não recebo piedade, sou eu que me torturo. Vou para o quarto para fugir dos apelos de meus familiares, das súplicas, de que lhes valho? Não compreendo realmente qual a importância de estar com eles, se não me percebem, se não me permitem que seja eu mesma, mas uma outra pessoa, que desconheço. Não conheço a mim, pois não sou quem deveria ser. Ou poderia ter sido caso fosse o que fosse e não o que me permite os estribos que me foram impostos. E quem puxa as rédeas? Quem me conduz nesta estrada onde não há placas que indiquem os caminhos? Na verdade todos nós somos mentirosos, mentimos a nós mesmos e ao mundo. Mas por mais que me minta, sei que não posso esconder a verdade de mim. Ela está na espreita, na próxima curva ela se me revela. “Todos os vossos segredos”. Diz-me a verdade que não se me esconde. E estão todos lá, reconheço-os. Colho-os como à flor solitária e comprimo-os como um botão entre os dedos, qual a cor? Branca ou vermelha? Esmago o botão  para matar a verdade, para aceitar a mentira em que vivo e que me é a realidade, e afogo o sonho num assassinato que na verdade é suicídio. “Você tangeu cordas invisíveis” Diria Virgínia Woolf. Deixo o botão cair-me das mãos. “Para onde estou indo?” Virgínia me socorre “Descendo por túneis ventosos, onde sopra o vento cego e nada cresce para podermos ver. Nenhuma rosa”. “Para chegar aonde?” Pergunto ainda. Mais uma vez ela me responde “Algum campo infértil e brumoso, onde a noite não baixa seu manto, nem se ergue o sol. Onde tudo é igual. As rosas não desabrocham. Não existe mudança, não existe vário e belo; nem encontros nem separações; nem buscas secretas quando as mãos se procuram e os olhos querem se refugiar em outros olhos.” “Achava que Hades não me queria por lá…” Retruco. Mas não sigo ainda para o reino inferior, vou com Morfeu, que no sonho me conduz, pela terra prometida, onde não há a mentira que me imponho nem a verdade que escondo, nem o medo de descobrir o que na verdade já sei e não aceito. E as memórias me pesam, é a carga que o passado impõe sobre mim, a cada passo cresce o volume do que carrego. Foi tudo que me depositaram no berço ainda, e busco sempre nas ondas do mar um meio de me ver livre desse peso, que não sou divindade para carregar nas costas todo esse mundo. Na verdade as divindades me repudiam, ou talvez seja eu mesma que me rejeite.  Mas não penso nisso agora. No sonho vou com as ondas, livre, livre…

*Há motivos para crer que todas as idéias públicas e todas as convenções aceitas são grandes bobagens, pois convém a maioria.

Giordana Medeiros: advogada pela OAB/DF, Pós-graduada em Ordem Jurídica pela Escola do Ministério Público do DF e cursa Letras na Universidade de Brasília. Teve contos publicados pela Editora Scortecci, pela Via Literária, Andross, Belacop e ficou em sexto lugar no Concurso Internacionalizando o Jovem Escritor. Ser escritora era um sonho de infância que, aos poucos, está se tornando realidade. É uma pequena vitória cada conto publicado, mesmo que não haja o devido ou esperado reconhecimento, estas conquistas são pequenos passos no eterno aprendizado que é a vida.


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Ao diabo com a burocracia!

O marido está em viagem a serviço ao Rio de Janeiro. Todos os dias à tarde liga para sua amada mulher. Para conversar com ela, para ouvir sua voz, segredar umas palavras carinhosas no seu ouvido, lhe contar o que se passou durante o dia.
   Você não pode imaginar o que hoje me aconteceu na caixa do Ministério.
   Deus queira que nada de mal!
   Nem pensar! Ouça lá! Fui ao guichê para receber a restituição das minhas despesas. O funcionário me deu cem reais a mais.
   Que cachorrão! Assim se enriquecem com os pobres concidadãos!
   Naõ me deu de menos—de mais!
   A sério? Então, isso é outra coisa. Uma nota de cem reais?
   É.
   Oxalá você não a tenha devolvido.
   Você sabe que sou um homem honesto.
   Quanto às coisas financeiras, julgo que sim . . .mas quanto às mulheres . . .
   Elas não fazem parte do tema. Então, eu quis devolver os cem reais . . .
   Você voltou ao guichê e devolveu a nota ao funcionário, né? Ele agredeceu a você efusivamente. Beijou suas mãos e seus pés.
   Não foi tão fácil. Tive de entrar na fila outra vez para aqueles que esperavam não fazerem alvoroço.
   E depois?
   Ao chegar à janelhina, o funcionário já não estava. Havia ido embora para tomar seu café.
   É um direito garantido pela Constituição.
   Ao que parece, sim. Voltei mais tarde, mas a fila havia aumentado. Outra vez tive azar. Encerraram o plantão há poucos minutos antes da minha vez.
No dia seguinte, o marido continua a contar.
   Voltei ao caixa do Ministério. Entrei na fila. Esperei. Mais de meia hora. De novo tive azar. No guichê de ontem, outro cara estava no serviço. Disse que não podia aceitar o dinheiro.
   E por quê?
   Disse que aquilo era «uma pagadoria e não uma recebedoria». Se eu quisesse de­volver o dinheiro teria de fazê-lo num guichê da recebedoria.
   Há muito eu me teria resignado!
   Eu ainda não. Me dirigi à recebedoria e me pus na fila de lá. Ao chegar a minha vez, o figurão atrás do vidro me disse que não se tratava dum pagamento, mas de uma devolução, e que isto era «um processo administrativo diferente».
   Eu, no seu lugar, lhe teria dito «Vai-te lixar! » e teria saído. Com o dinheiro, claro.
   O burocrata exigiu de mim que apresentasse «uma guia de pagamento» pelo dinhei­ro recebido a mais. Mas onde tiraria uma guia dessas? Se o tipo pensou, a sério, que seu colega da pagadoria havia confirmado por escrito que me tivesse dado cem reais a mais? Que estupidez!
   Não disse para você que era melhor não dizer nada e simplesmente ficar com os cem reais? Bastariam para comprar uma lembrancinha interessante. Em vez de tentar devolver, de se chatear com funcionários burros e de perder tanto tempo.
   Uma lembrancinha . . . eh . . . hum . . . boa ideia.
   Você nunca pensa em uma lembrança para sua mulher quando está no Rio. Mas talvez você viva pensando em «uma coisinha« para apanhar uma das gatinhas de Copacabana, hein? Elas são vistas na televisão, por toda a parte na orla, seminuas, à procura de homens sozinhos!
   Elas não me interessam não. E será que você poderia se limitar ao assunto uma única vez? Então, perguntei ao figurão o que me aconselharia. Ele disse que sem guia naõ podia fazer nada, que eu tinha de entregar os cem reais ao chefe da seção, e que o chefe ia resolver o assunto.
   E resolveu?
   Sei lá. Talvez, se ele não tivesse já saído. Mas a secretária marcou uma hora pra mim. Para amanhã.
   Que secretária?
   Do chefe da seção. Uma moça bem simpática e prestativa.
No dia seguinte, a mulher abre a conversa.
   Você já comprou a lembrancinha?
   Qual lembrancinha?
   Você prometeu me trazer uma lembrancinha do Rio. Já não se lembra?
   Não prometi nada a você.
   Você disse que pelos cem reais se podia comprar «uma lembrancinha interessante».
   Me lembro que foi você que disse.
   O que é que você deu à secretária tão «prestativa» para ela marcar uma hora oportu­na pra você com seu chefe? Ela tem pernas bonitas? E um decote grande? Diga!
   Seus ciúmes me matarão um dia! Regressemos ao tema. Eu fiz questão absoluta de devolver os cem reais. Afinal de contas, esse dinheiro não era meu. Precisei, no en­tanto, esperar mais de meia hora antes do grande chefe se dignar a me receber.
   E você esteve na recepção, a sós com a secretária tão «simpática». Tá legal! Que olhos tem ela?
   O chefe me disse para redigir um ofício historiando o fato e devolvendo o dinheiro. Me perguntou, além disso, quem me tinha enviado a ele.
   Hein? E depois?
   Se enfureceu muito com ele e quis que eu me dirigisse ao coitado para lhe dizer «para deixar de ser besta», com os parabéns do chefe mesmo.
   Você o fez?
   Tô louco? Não o fiz não. Eu disse que não tinha nada com essa briga, que só queria fazer logo o ofício para poder voltar o mais rápido pro meu trabalho.
   Foi mais que horas. Certamente estavam à espera de você há muito.
   Acho que sim. Mas o chefe disse que não era tão fácil, que tudo devia seguir pelos trâmites legais, e que eu tinha de «dar entrada no protocolo», quer dizer, preencher uma grande quantidade de impressos e esperar pela decisão da repartição superior.
   Meu Deus, que absurdo!
   Sim, sim! Por maior que tivesse sido a minha teimosia, agora ela teve fim. Disse com meus botões «Ao diabo com a burocracia!» Saí, dirigi-me para o guichê onde tinha recebido o dinheiro, fiz da nota de cem reais uma bolinha, a atirei lá dentro por cima do vidro e fui-me embora.
   Sua honestidade nas coisas financeiras um dia nos porá na miséria! A propósito, vo­cê ainda não respondeu às minhas perguntas sobre a secretária!

Joachim Neander: Nasceu em 1938. Matemático e historiador (doutorado em 1997). Trabalha por conta própria como tradutor literário e escritor científico especializado no Holocausto. Mora na Polônia e já escreveu cinco livros, bem como muitos artigos para jornais históricos. Em outubro 2010 publicou em Cracóvia o livro de poesia, contos e ensaios em polonês Nocne widma (Fantasmas noturnos).

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Símbolos
Todos os dias eram assim. Eu acordava, fazia o café, varria, lavava, cozinhava e observava meu pai  com seu constante cigarrinho na boca a remexer a terra, ordenhar as vacas, plantar as sementes, brigar com as saúvas, larvas e arames; sempre com meu irmão ao lado, que permanecia atento e concentrado às informações que lhe chegavam. Meu pai dizia que, assim como meu avô o fizera, transformaria meu irmão em um grande fazendeiro para que pudesse tomar conta de nossas posses e terras, que hierarquicamente passavam de pai para filho em nossa família.
Aquele lugar era sagrado para meu pai, suas raízes nasceram e se firmaram ali e, em hipótese alguma, deixava nossa casa sozinha, sem seus cuidados; nem mesmo aos domingos quando todos os homens do lugarejo se reuniam no boteco ou iam para a várzea. Mesmo nesses dias, ele permanecia no quintal com seus afazeres ou relaxava por poucos minutos sentado em seu banquinho na varanda, com cigarro na boca e olhos fixos em mim. Adquiriu essa inquieta mania e isso me apavorava. O que se passava em sua cabeça me olhando daquele jeito? Nunca tive coragem de lhe perguntar ou de ao menos olhar dentro de seus olhos e tentar buscar uma resposta. Apenas abaixava a cabeça, corria para dentro de casa e agarrava a escova de cabelo de minha mãe, como se aquele objeto pudesse me proteger e reconfortar.
Era nessa hora que sentia mais a falta dela. Depois de sua morte, meu pai nunca mais foi o mesmo, passou a ter hábitos estranhos e se transformou em uma pessoa calada, triste e solitária. Não permitia a aproximação nem mesmo de meu irmão, com quem ele passava a maior parte do tempo. Quando Edgar tentava tocar em um assunto diverso, que não fosse a respeito do trabalho diário ou da fazenda, logo se mostrava irritado e rude. Nas datas comemorativas, aniversários, páscoa, natal, permanecia com a mesma frieza e nessas noites ficava em pé, sob a luz da porta, até alta madrugada como se estivesse à espera de alguém ou algo; seu único companheiro era aquele maldito cigarro que o deixava impregnado de mau cheiro. Nesses momentos, tinha vontade de abraçá-lo e dizer-lhe que mamãe estava olhando por nós e que ele era muito importante para mim e para meu irmão. Por várias vezes esse súbito desejo crescia dentro de mim, mas logo algum sentimento desconhecido me impedia e então eu corria em direção à escova.
O senhor da propriedade ao lado dizia que somente o tempo faria nós nos esquecermos da perda de mamãe. Na verdade, jamais esqueceríamos, gostaríamos realmente é que ela jamais tivesse nos deixado.
            Após a morte dela, nada naquele lugar me fascinava tanto quanto a meu irmão; afinal nossa terra não precisaria dos cuidados de uma mulher, como afirmava meu pai. Sentia-me um pouco rejeitada e imaginar passar o resto de minha vida presa àquele fim de mundo sem ter ao menos com quem conversar e sem compreender o que se passava na cabeça de papai, aterrorizava-me. Apesar de sentir imensa solidão, era impossível imaginar algo além daquelas montanhas, minha realidade se restringia a organizar a casa, pois poucas distrações e brincadeiras me restaram mediante tanta angústia que aquele local agora transmitia; diferentemente de outrora, quando mamãe e papai deixavam nossos dias repletos de alegria e diversão. Essas lembranças de infância sempre me traziam muita esperança e trazê-las de volta me enchia de entusiasmo e felicidade. Muitas vezes aquela escova de cabelo me possibilitava lembrar com maior afinco, dos momentos felizes que passáramos juntos. Mamãe adorava ficar longos minutos escovando seus cabelos e  aconselhava-me a agir da mesma maneira e, mostrando-me como fazer, acariciava minhas madeixas com zelo;  por isso a escova era minha inseparável companheira.
Devido a esse saudosismo e a esse desconhecimento do mundo fora dos horizontes da fazenda é que foi tão difícil e penoso deixar Edgar e papai, quando este decidiu mandar-me para o convento de Nossa Senhora do Carmo, na cidade de Belo Horizonte. Ao perceber que me tornara uma bela e atraente adolescente e que os peões olhavam-me com olhos desejosos, não teve dúvidas. Em um domingo à tarde, sentado em seu banco, olhando-me profundamente como de costume,  dirigiu-se a mim e anunciou que eu partiria na segunda, pela manhã. Minha reação inicial foi de felicidade, mas logo uma terrível insegurança me fez chorar como há muito não acontecia. Minha fuga foi a querida e inseparável escova de cabelos, à qual me agarrei durante toda a noite. Apesar da solidão, não saberia como agir em outro lugar, e que lugar seria esse? Choramingar não resolveu. Papai estava resolvido e já tomara todas as providências. Arrastou-me pelos cabelos para a carroça que me levaria até o convento. Em minha cabeça, as brincadeiras da infância com mamãe, as rotinas de trabalho, meu irmão e meu triste pai ficando para trás.
O início foi bastante atribulado devido a minhas limitações e à enorme saudade de minhas origens, mas rapidamente compreendi que aquele convento representava uma oportunidade única de crescimento em minha vida. Assim me esforçava ao máximo e era extremamente dedicada às tarefas que me eram ordenadas. Logo que fui alfabetizada, escrevia semanalmente cartas para Edgar e papai. Como não sabiam escrever, recorriam ao vizinho e respondiam restringindo-se a dizer que a fazenda ia muito bem. Apesar das irrisórias mensagens, ficava feliz em matar a profunda saudade e em saber que tudo corria bem.
Com o passar do tempo, adaptei-me àquela nova realidade e em meus pensamentos e orações, agradecia por meu pai ter tomado aquela atitude, afinal meus horizontes se abriram  e  me tornei uma professora, que jamais se esqueceria de suas origens e de sua família. Lecionava em colégios coordenados pelas freiras e realizava trabalhos sociais para pessoas carentes.
Em uma manhã, como de costume, fui ao encontro do carteiro que me trazia as respostas de minhas saudosas cartas. Percebi que a folha estava dobrada de uma forma diferente e, ao abri-la, surpreendi-me ao encontrar uma “binga” de cigarro lá dentro, que logo joguei fora, imaginando que alguém, por descuido ou desmazelo, deixara lá. A carta tinha apenas uma frase, o que também não era anormal, mas seu conteúdo realmente me fez perder todos os sentidos. A carta trazia a seguinte frase: “Esse foi o último cigarro que nosso pai fumou. Um abraço, Edgar.”  Após alguns segundos paralisada, corri até o lixo, recuperei a “binga” e permaneci por um longo tempo a cheirá-la e a acaricia-la. Ela não mais cheira mal e nem era apenas uma “binga” de cigarro. Assim como a escova de cabelo simbolizava minha mãe, a “binga” trazia naquele momento todas as lembranças boas e saudades do passado feliz com papai.
Permaneci na clausura por um longo tempo abatida, mas o implacável tempo continuava a passar. E a cortina imprecisa das lembranças permite-me vislumbrar o passado e compreendê-lo. A velha escova, que me trazia segurança, por recordar minha mãe; fez-me perceber que, também, meu pai via-a em mim, por isso a estranheza. Como a escova, também, a “binga” de meu pai, companheira inseparável, guardada no estojo e na alma, traduz a certeza de que a vida continua a tecer as tramas de sonhos, dores e amores.
Priscila Maini Pinto: Graduada em Letras, Especialista em Literatura pela UFJF e Mestre em Letras pelo CES-JF.

Contato: priscilamaini@yahoo.com.br
Participações Especiais
RASTRO

              á   r  v  o  r   e    d   o                   á   r  v  o  r   e     d   o
              e s q u e c i m e n t o                    a l u m b r a m e n t o

              para  não sofrer com                   : palavra  dos  mortos
              a  praga  dos  mudos                    que atrai a felicidade
              exigir  que  os  vivos                    cabeça   à  espera  da
              circulem  o  eixo  do                    nudez  para florescer
              mundo  – sua agonia                    .................................        
              ilustra  a desonra  do                    .................................        
              corvo .......................                   .................................        
              ......................o lucro                   .................................        
              do escárnio..............                    .................................        
              á   r  v  o  r   e    d   o                   (                              )        
              exílio  cevada   onde                    .................................        
              não  estivemos,  raro                    .................................        
              piano em esqueletos                    .................................        
              disposto – árvore do                                .................................        
              incêndio  saliva gare                    .................................        
              des mots dos mortos                    .................................

                        ... le  jour  ne sait pas ton nom, ni  ne  le  pourrait. tant
                        cris  de  pluie dorment encore dans  les arbres: embora
                        o machado  esteja  vermelho, o ouriço come  folhas de
                        embaúba,  o  ouriço  come  folhas de bambu,  o  ouriço
                        vai  suavemente  sobre  a relva ao encontro da sombra,
                        sua irmã de pêlo escuro: o ouriço não  anda  quando o
                        sol está de pé ................................le jour est  aussi une
                        nuit lumineuse e ‘ÕNYÃM    OOURIÇO TUTHI  XUX MÃHÃ
                              
                               filho da mesma flora, o leopardo salta na  linguagem e
                        arranha: EKUN  TOFOJU  TANAN  leopardo olhos de fogo
                                                                                                                                              
                        ao lançar-se no espaço defende  outro  arco-íris, o dia
                        e a noite fazem  sua  camisa –  aquela que o  leopardo
                        sua ao dar-se curvo no salto. seu arco, seta do próprio
                        sangue, dispara: o leopardo sob a íris renasce, filho da
                        mesma aragem, rapto de si, senhor que não se declara   
                        ___________________________________________
                       
                        bien sûr, dirão os temerosos da palavra, já não se mira
                        no fruto o que foi a  árvore,  tomai bebei  a  gramática,
                        levai,  aos  domingos,  vossa língua ao  ácido silêncio:
                        EL SIGNIFICADO  NO  TIENE SEMILLAS,  pois  cortou-se  o
                        mal pela raiz: não    floresta,  signos  bichos não há
                        ___________________________________________                   
              á   r  v  o  r   e     d   o                  á   r  v  o  r   e     d   o
              a l u m b r a m e n t o                   e s q u e c i m e n t  o
                  
              para não sofrer com a                 palavra morta oouriço
              e o leopardo crescem na  jaula da história,  sua cabeça
              repousa no hímen da noite        a noite grávida de sóis
                         
                                      EL SIGNIFICADO  ES SEMILLA
                                                  :       OPEN THE WINDOW         :
  
                                                  OOURIÇO TUTHI  XUX MÃHÃ
                                               EKUN  TOFOJU  TANAN       OS
                                                               DOIS    ENTRE   AS   ÁRVORES

                               são o que  não  parecem:  quando   transitam com suas
                        memórias   de   londres,    quem  lhes  diga:    je ne
                        vous connais pas. se rolam  em sua veste  tecida  pelos
                        ancestrais,  não há quem  lhes diga:  – my  brother.  no

                        ESPAÇO ENTRE UM PASSO  E OUTRO       UM SALTO E OUTRO

                        oleopardooouriço  ofende  a calmaria  dos  verbos, sua
                        fala saliva para nutrir  a  árvore  das  árvores    a  que
                        tem raízes para o céu  e flores  para a  terra.  se  roesse
                        a língua,  ao  invés  de  engordá-la,   oleopardooouriço
                        não teria  como  divorciar-se dela.  por isso  a  ternura
                        das garras/o veludo da pele, presente que  mutila  para
                        engravidar o futuro. oleopardooouriço                recusa                   a cidade  e  a  floresta                  reage anti-linguagem  
              á   r  v  o  r   e     d   o                  á   r  v  o  r   e     d   o
              e s q u e c i m e n t  o                   a l u m b r a m e n t o
Edimilson de Almeida Pereira: Possui Graduação em Letras Vernáculas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1985), Mestrado em Literatura Portuguesa (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990), Mestrado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1996), Doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000) e Pós-doutorado em Literatura Comparada (2002) pela Universidade de Zurique. Atualmente é professor titular da Faculdade de Letras, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Cultura e Identidade, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura brasileira poesia, cultura afro-brasileira imagens/ identidades, cultura popular tradição modernidade, literatura juvenil e infanto-juvenil


UM TERNO PARA K.*

Quem és afinal entre os homens? Quantos anos tens, meu caro?
                                 Que idade tinhas quando o Medo chegou?
Xenófanes de Colofão

I


Os gestos exagerados do ajudante, um homenzinho de origem russa que se recusara a aprender o idioma do país de exílio, foram mais que suficientes para conduzir o cliente até a bancada onde o alfaiate, com uma elegância duvidosa, manuseava metro, réguas e giz. Não fora pelo cenário desleixado, um amontoado de manequins, prateleiras, retalhos, caixas de papelão, cabides, peças de fazenda e cadeiras, até a iluminação, incidindo sobre a calva do alfaiate e destacando um lápis azul enfiado na orelha direita, poderia sugerir uma cena teatral, particularmente quando num gesto largo o braço daquele homem, encurvado menos pelos anos do que pela profissão, se erguia descrevendo um arco e os dedos polegar, indicador e médio fechavam sobre a ponta do lápis para lentamente trazê-lo, já em posição de escrita, até um pequeno bloco de notas sobre a mesa. O barulho dos passos do ajudante nos degraus da escada que levava ao sótão fizeram com que alfaiate e cliente elevassem o tom de voz para os cumprimentos de praxe, mas logo voltaram a falar na altura adequada ao ambiente.
Como o alfaiate estivesse acostumado com a impaciência que caracterizava a maioria dos fregueses, disse-lhe que, em tal ofício, menos rigor não se admite. “Ainda quando a encomenda seja para novembro, não descuro de uma severa matemática nem me permito afetar pela urgência do cliente, o qual, durante a apuração das medidas, deve se portar de acordo com as instruções exaradas verbalmente ou através de meneios de cabeça e toques executados com as pontas dos dedos nas partes apropriadas dos membros inferiores e superiores.” Como o rosto do cliente não denotasse enfado, os olhos inclusive pareciam trair certo interesse, o alfaiate prosseguiu, ressaltando que nada seria aviado com presteza de quitanda, posto que, à roda do metro, cumpre à mão o manuseio adequado dos instrumentos de medição e ao olho vigiar a postura do freguês, averiguando quaisquer desvios nos padrões anatômicos, demorando nos elementos mais suscetíveis a equívocos, avançando conforme os procedimentos técnicos consagrados e conferindo exaustivamente as anotações, até que a cifra confirme e ateste a medida do homem e sua hora.
Enquanto tirava as medidas, o cliente mudando de posição conforme as instruções, o alfaiate aproveitou para explicar que o risco e o corte são atividades de extrema complexidade. “Em ambas, urge ter completo domínio sobre quaisquer tremores ou hesitações – em geral advindos de elementos perturbadores externos –, de forma a evitar transtornos no encaixe preciso das peças, assegurando rebarbas nos limites do aceitável, tendo em vista as correções métricas necessárias – incluindo alargamentos e pences, em geral ínfimos –, consoante os princípios da lei de dilatação natural dos corpos expostos a variações de humor, temperatura e umidade.” Antes de desfazer a última postura, pernas abertas e mãos estendidas ao longo do corpo, o freguês foi informado de que, após o corte, é recomendável o chuleio imediato das bordas mais propensas a esgarçar, atentando principalmente para as formas curvas e as peças de corte transversal em relação à trama do tecido; entretanto, tal procedimento tem a eficácia pretendida apenas quando acompanhado da manipulação adequada da fazenda.
Durante todo o processo de aferição das medidas, os leves meneios de cabeça do cliente, duas ou três vezes acompanhados da expressão “Sem dúvida”,  os olhos fixos em algum ponto não muito distante, a respiração tranqüila e a estrita observância das instruções deram ao alfaiate – a ponto de irritar-se com os ruídos que vinham do sótão, temendo que pudessem perturbar aquela sóbria compleição, em tudo adequada à sua atividade – a certeza de que ele devotava, senão apreço, ao menos um interesse singular pela técnica de confecção de ternos. “Peço ao senhor que não se sobressalte com o barulho. Deve ter reparado na óbvia inabilidade de meu ajudante, um sujeito inacabado tanto física quanto mentalmente. Ainda na semana passada espatifou um prato e quase que eu alfineto a axila de um freguês.” Mas, como alguns dias depois o alfaiate confidenciaria a um colega de ofício, nada parecia afetar aquele homem, completamente absorvido pelas palavras e instruções; enfim, um freguês cioso da submissão que se exige para que as medidas sejam apuradas com a necessária precisão. 
Assim, nem o movimento ostensivo da mão espalmada do cliente em sua direção nem a postura enviesada do corpo, indicando a intenção de deixar o atelier, impediram que o alfaiate adiasse a despedida com perguntas de todo desnecessárias, apenas para secundá-las com novas observações acerca de sua especialística: “Colocar um terno de pé impõe uma habilidade comparável apenas à do prestidigitador; em muito mais arriscada, pois que lidamos com instrumentos pontiagudos e cortantes, e tal tarefa põe à prova não apenas as mãos e a memória, mas também a boca, o raciocínio matemático e, principalmente, os olhos – os olhos do próprio alfaiate, muito mais próximos e rigorosos que os de qualquer espectador.”  Enquanto consultava um grande caderno de capa preta para verificar data e hora mais propícias à primeira prova, o alfaiate acrescentou que, em geral, a substituição de peças cortadas de forma incorreta pode comprometer todo o trabalho, devido a variações tanto de tonalidade quanto de espessura da trama. “As margens de erro são infinitesimais, quase inexistentes, e a rigidez do manequim serve exatamente para denunciar qualquer equívoco, seja de medida, corte ou montagem.”
O cliente já se dirigia para a porta quando os passos do ajudante descendo a escada fizeram-no demorar um pouco mais, o tempo suficiente para estender-lhe a mão e responder a alguns gestos convencionais. Desinteressado da cena, o alfaiate retomou os seus afazeres, conferindo com o metro as medidas das peças já riscadas; mas como o diálogo pantomímico do cliente e do ajudante se prolongasse para além do esperado, agora incluindo ruídos vocais e onomatopéias, ele inclinou a cabeça para trás e ficou observando a excitação que tomava conta de ambos. Do ajudante não esperava menos, principalmente porque encontrara alguém que lhe concedia alguma atenção; no entanto, os gestos excessivos do cliente não lembravam em nada o homem cordato que tanto o impressionara. Os dois permaneceram parados ali por mais alguns minutos até que o alfaiate pigarreou repetidas vezes, o que foi suficiente para que o ajudante se despedisse do cliente, conduzindo-o à porta, não sem antes gaguejar a única frase que sabia na nossa língua – “Todos procuram alcançar a porta” –, seguida de um risinho de tal modo irritante que foi prontamente interrompido por outros tantos pigarros do alfaiate.

II


No dia aprazado para a primeira prova, como sempre o alfaiate orientou o ajudante para que permanecesse no sótão chuleando peças recém-cortadas, de forma a garantir o ambiente propício a uma tarefa que requeria extrema concentração; qualquer ruído, incluindo ranger de dentes, manusear de talheres, girar de maçaneta, zumbir de insetos ou pingar de torneira, e todo o processo podia desandar. Mal a porta se fechou atrás do cliente e o alfaiate, sem ao menos cumprimentá-lo, apressou-se em travar a fechadura e afixar no vidro a tabuleta de fechado; apenas depois dirigiu-lhe as palavras habituais, sem conseguir disfarçar a respiração ofegante de quem não está acostumado àquela rapidez de movimentos ou de quem se excita demasiado com a responsabilidade que o espera.
Enquanto o freguês andava lentamente em direção à bancada, o alfaiate cruzou os braços sobre o peito, inclinou a cabeça para trás e permaneceu parado por alguns instantes, tanto para recuperar o fôlego quanto para observar o terno cinza que o cliente trajava; era um terno sóbrio, arremate impecável, caimento perfeito – com certeza obra de um mestre do ofício, embora a sua rigorosa inspeção detectasse áreas já puídas no colarinho e nos punhos do paletó, denunciando os anos de uso. “O senhor se importaria de revelar o autor desta obra-prima que está vestindo?” Porque estivesse empenhado em adaptar-se fisicamente ao atelier ou procurasse indícios do ajudante entre a profusão de objetos em desalinho ou tentasse adivinhar qual dos manequins usava o seu futuro terno, o freguês demorou para responder.
“Não, não saberia dizê-lo, pois o herdei de meu pai, como de resto todos os ternos que usei até a presente data. Este que contratei ao senhor será o primeiro sob medida, embora seja razoável incluir os ternos de meu pai nesta categoria, pois que nunca foi necessário fazer quaisquer ajustes; hoje sei que menos pela semelhança de nossas anatomias do que pela maestria do alfaiate. Um terno deve sobreviver ao homem e suas medidas.” Apesar de inenfáticas como num texto jornalístico, as palavras do cliente transtornaram o rosto do alfaiate, acrescentando-lhe algumas rugas de preocupação; em primeiro lugar, porque alteravam, mesmo que momentaneamente, a impressão que ficara do primeiro encontro, de um homem a tal ponto centrado em si mesmo que prescindia de palavras e gestos, a não ser os estritamente necessários para fazer-se perceber quando assim desejava; em segundo lugar (e principalmente), porque revelavam a expectativa por um grau de perfeição cuja altitude o alfaiate temia não ter pulmões para suportar, posto que, embora tendo como meta o código dos grandes mestres do passado, sabia que a vida moderna tinha embaralhado para sempre os antigos métodos e que as suas próprias limitações não eram poucas.
Com o intuito de se recompor, o alfaiate prolongou ao máximo o tempo gasto para percorrer a distância entre a porta e a bancada, o queixo enterrado no peito como que procurando alguma coisa entre os retalhos que faziam do piso do atelier uma abreviatura morta de todos os paletós, coletes e calças que saíram dali em anos de trabalho. Assim que tomou seu lugar atrás da bancada, móvel que pelas dimensões e robustez lhe emprestava uma certa dignidade, mantendo os clientes na distância adequada, dissiparam-se as preocupações do alfaiate e ele pôde erguer o rosto em direção ao freguês sem medo de transmitir-lhe qualquer sensação que pudesse perturbar a tranqüilidade física e espiritual necessária à primeira prova. 
Com o ricto indecifrável de quem inaugura a estátua de um herói, o alfaiate estendeu o braço direito na direção de um dos manequins e lentamente puxou o lençol branco que ocultava a encomenda; seus olhos não surpreenderam qualquer movimento no rosto do cliente, nenhum indício de surpresa ou de decepção – e isso, ao invés de perturbá-lo, deu-lhe a certeza de que tratava-se do mesmo homem que, semanas antes, submetera o próprio corpo ao rigor da fita métrica, de forma tão dócil e serena que dir-se-ia estar por completo dentro de si. Enquanto vestia o dedal com uma lentidão solene e iniciava a desmontagem do terno no manequim, espetando os alfinetes na almofada e dispondo as peças meticulosamente sobre a bancada, o alfaiate orientou o freguês para que tirasse o paletó, indicando-lhe um cabide.
“Podemos dar início à primeira prova” – determinou o alfaiate com uma confiança que parecia declinar na medida que avançava a frase, indicando que as rugas de preocupação estavam apenas maquiladas pelo sangue-frio próprio ao ofício –, “mas entenda que aqui se põe à prova não apenas os méritos de minha especialística, seja na aferição das medidas, no risco, no corte, na montagem ou no alinhavo, mas também as infrações, por mais ínfimas e decerto inconscientes, que o senhor conseguiu perpetrar contra as normas que regulam a postura de um cliente enquanto se submete à medição.”
Com movimentos quase mecânicos, de tão precisos e econômicos, o alfaiate se entregou à tarefa de vestir no freguês o corpo do paletó, o que impunha uma cautela – ao menos eram estes os modelos que procurava seguir – em muito análoga à do cirurgião e do relojoeiro, e oferecia o tempo e a atenção necessários para explicar ao cliente que também estavam sendo postos à prova, além dos fatores humanos, todos os materiais e instrumentos empregados até aquela etapa do processo, muitos deles sensíveis a mudanças climáticas e de outras espécies. “E não nos esqueçamos” – disse com uma tentativa de sorriso –, “não nos esqueçamos nunca do imponderável.”
Após a operação realizada para fixar as mangas do paletó – tão meticulosa a ponto de exigir que a visão de conjunto fosse momentaneamente suspensa em benefício de uma atenção restrita aos detalhes e ao transporte dos alfinetes dos lábios para o pano –, o cliente foi orientado a adotar uma postura ereta, enquanto o alfaiate se afastava uns dois ou três metros para inspecionar o ajuste das peças. Apenas ao custo de alguns pigarros e de um tique que, antes de atingir as pálpebras, ele escondia na rótula esquerda, o alfaiate conseguiu conter o grito, transformando-o numa exclamação que logo foi submetida pelos dentes e lentamente desceu para o estômago, restando na boca apenas um gosto semelhante ao de pernoite com muito café e tabaco. Nem os termos do mais fabuloso bestiário medieval ou os croquis dos instrumentos de suplício da Santa Inquisição ou as gravuras de um catálogo das máquinas infernais do século XVIII serviriam de analogon descritivo para aquele objeto cujos alinhavos e peças pareciam em litígio com todas as cifras.
Da distância em que se encontrava e sob a luz difusa do atelier, ao alfaiate ocorreu encontrar naquele strafalcione – palavra que o seu furibondo maestro-sarto gritava antes de retalhar a navalhadas as experiências mal-sucedidas dos aprendizes – semelhanças com as “pinturas negras” e os Disparates de Goya, mas a lembrança do mestre italiano logo o fez buscar analogias nas anamorfoses e composições bizarras de Arcimboldo, apesar da ausência de cor e embora nenhum dos ângulos que adotara para observar revelasse quaisquer aspectos ocultos, a não ser o desenho impreciso de objetos que assombravam a sua visão para logo se dissiparem no emaranhado de panos, linhas e alfinetes. A absoluta falta de apuro plástico daquela extravagância não permitia ao alfaiate imaginá-la sequer entre os objetos da Kunst-und-Wunderkammer de Maximiliano II, mas quem sabe o seu aspecto grotesco e insólito pudesse garantir-lhe ao menos um discreto nicho no lendário gabinete de curiosidades de Ferdinando de Tirol, à sombra dos mais medíocres plagiários arcimboldescos.
Do ponto de vista mais favorável, poder-se-ia imaginar que uma bigorna oprimia o peito do cliente e, como os alfinetes se insurgissem contra aquela bizarria, o ombro esquerdo assemelhava uma anêmona e o direito, um ouriço; enquanto o abdômen do supliciado parecia convertido no cabrestante de um porto decadente, ataviado de cordas inúteis e esfiapadas, e as mangas mudavam os braços em hastes de um compasso de espessura. Outros ângulos de visão revelavam analogias com objetos híbridos, resultantes do engate de um guarda-chuva com um ancinho ou da acoplagem entre escada, prensa e saca-rolhas. Quanto às costas, o tecido amarfanhado lembrava ora uma panóplia cumulada de animais e plantas exóticos, ora o balão estratosférico do professor Piccard, ora um estandarte roto pela batalha. Um menino de dez anos asfixiaria naquele disparate de panos, mas o cliente permanecia impassível, talvez porque a sua inexperiência em provas deste tipo não lhe permitisse julgar o despropósito da obra, talvez porque confiasse cegamente na competência do alfaiate, talvez porque creditasse à posição enviesada do espelho do atelier as deformações do paletó.
“A primeira prova se presta ao remate de muitos males” – disse o alfaiate enquanto às pressas cuidava de desmontar o paletó, jogando as peças sobre a bancada. “Creio que nos precipitamos” – o uso da primeira pessoa do plural era quase uma tentativa de dividir com o freguês a responsabilidade por aquele absurdo –, “pois a calça e o colete não estavam preparados para esta primeira prova, além do que devemos conferir algumas medidas.” A resposta inenfática do cliente – “Sem dúvida” – perturbou o alfaiate, mas não o suficiente para impedi-lo de tomar as medidas do colarinho, dos ombros e das costas com atenção redobrada, comparando-as com as anotações anteriores. “Penso que dirimimos todas as dúvidas, estamos em conformidade com as cifras” – afirmou o alfaiate sem atentar para a resposta habitual do freguês, tão empenhado que estava em encaminhá-lo à porta e, de resto, aliviado por não haver, excetuando-se o discreto cliente, testemunhas da sua tribulação, sequer o ajudante.   

III

                    
Quisera o alfaiate dominar as ciências ocultas para, na segunda prova, reconstituir até mesmo as condições metafísicas em que ocorrera o seu primeiro contato com o cliente. Como não detinha tais conhecimentos, tratou de reproduzir nos mínimos detalhes as circunstâncias materiais daquele encontro, sem descurar de quaisquer variáveis; estava certo de que, em sendo possível ao menos a simulação destas, poderia realizar o que acreditava ser a culminância de toda uma vida dedicada à alfaiataria: a coincidentia oppositorum do cliente e do terno. Dedicou semanas a conferir e confrontar as medidas anotadas e transpostas para o tecido, não encontrando qualquer equívoco ou contradição; por suspeitar da precisão da fita métrica e das réguas, não titubeou em submetê-las à inspeção de um metrologista bastante discreto; obrigou o ajudante a lembrar e a repetir exaustivamente cada movimento, cada gesto, cada ruído, por mínimo que fosse – até que os seguidos ensaios o transformaram numa espécie de fantoche em tamanho natural, cumprindo mecanicamente as marcações definidas pelo diretor improvisado.
Na véspera da segunda prova, o alfaiate examinou em minúcias cenário, iluminação e figurinos, repassou as cenas do ajudante, ele mesmo interpretando o cliente, e consumiu horas da noite de insônia repetindo as suas falas, de forma a apurar a inflexão e verificar a estrita obediência às rubricas e marcações. Só não realizou o ensaio geral como pretendia; o ajudante estava exausto e precisava descansar o suficiente para prevenir qualquer risco de branco e ajudar nos retoques de última hora, em particular na revisão do posicionamento dos objetos de cena. Mesmo procurando manter o autocontrole, a angústia da estréia dominava o alfaiate; como um jovem ator que, na coxia, aguarda o terceiro sinal, ele repetia para si mesmo “Merda! Merda! Merda!”, inspecionava uma vez mais a disposição das peças e instrumentos sobre a bancada, refazia cada gesto e movimento da sua mise-en-scène, verificava o figurino no espelho e tornava a repetir, agora com acento francês, “Merde! Merde! Merde!”, talvez uma remissão à sua única experiência teatral, uma comédia de Molière, felizmente abortada antes de chegar ao palco do colégio... nem o título lhe ocorria.
Le malade imaginaire. A lembrança chegou ao mesmo tempo que o ajudante, logo orientado a cuidar dos preparativos no sótão e estar pronto para a entrada do cliente. Por sua vez, o alfaiate ocupou a bancada para refazer todas as atividades que antecederam o primeiro encontro, conferindo as medidas de peças já riscadas, cortando outras, chuleando, alinhavando um paletó há muito adiado, sentando à máquina de costura para arrematar o forro de um colete cinza; em cada tarefa buscava reconstituir o homem que fora até aquele freguês. Embora pudesse aproveitar a ocasião para colocar as encomendas em dia, alguns clientes já reclamavam dos constantes atrasos, não conseguia se concentrar o bastante, a não ser quando repassava as suas cenas ou inspecionava meticulosamente os elementos do cenário e do figurino – a posição do espelho e dos manequins, o lápis azul na orelha, o bloco de notas aberto na mesma página – ou se imaginava um ator aquecendo os músculos e a voz na coxia. “Merda! Merda! Merda!”
Três leves batidas na porta foram o primeiro sinal; os passos do ajudante descendo a escada, o segundo; o ruído da fechadura, o terceiro. O rigor com que, no fundo do palco, o alfaiate procurava interpretar o profissional totalmente absorto no trabalho não o impediu de levantar os olhos algumas vezes para acompanhar sorrateiramente a cena, tanto porque temia pela performance do ajudante quanto porque precisava estar preparado para a primeira deixa do cliente; no entanto, a repetição mecânica por parte do ajudante de cada gesto e de cada movimento o tranqüilizou. Mesmo o freguês, exceto por variações tão ínfimas que apenas os olhos de um especialista podiam notar, parecia ter ensaiado à exaustão o seu papel naquela peça, tal era a conformação com que se entregava ao déjà vu da cena; embora pudesse estar influenciado pela vis dramatica da sua própria criação, o alfaiate diria que até o terno do cliente era o mesmo do primeiro encontro.
Enfim o alfaiate já não representava um papel, vivia o homem que era antes daquele freguês; o primeiro impulso foi tirar as medidas, logo refreado pela obediência estrita do texto; era preciso seguir à risca as falas, os gestos e os movimentos definidos no decorrer dos ensaios. Como num ritual, após ajudar o cliente a se despir e colocá-lo na marcação adequada, o alfaiate dispôs as peças do paletó sobre a bancada e iniciou a montagem: primeiro a calça (atenção redobrada para com o cós e o gavião); depois o colete (os olhos fixos no encaixe perfeito das peças); por fim o paletó (como sempre soube pegar na almofada o número exato de alfinetes). Nada podia perturbar o esmero que dedicava a cada elemento; dir-se-ia que aqueles gestos, de tão precisos e parcimoniosos, eram realizados por um cego que, desde muito jovem, tivera as mãos e os braços amoldados pelo método. “O senhor permaneça onde está até que eu possa posicionar o espelho para termos uma visão do conjunto.”
“Merda! Merda! Merda!” As únicas palavras que ocorriam ao alfaiate por pudor não foram pronunciadas, transformaram-se num ruído que só sem pulmões se produz, um soluço, talvez uma risada; lentamente empurrou o espelho para um canto escuro, lentamente dirigiu-se para a bancada, lentamente manuseou os instrumentos do seu ofício à procura de amparo, lentamente os olhos atônitos percorreram os objetos do atelier até encontrar o cliente, quase um espectro, a cabeça inclinada para trás, o corpo completamente rijo. O alfaiate era agora como um ator solitário que, sob a luz do proscênio, esquece o texto do monólogo – o ponto adormeceu na primeira cena do segundo ato, a platéia já demonstra certa inquietação e sequer lhe ocorre improvisar, apenas espera por um blackout ou que desça a cortina. Acta est fabula!  
Três coisas impediram o alfaiate de desabar em cena aberta: primeiro, a quietude do freguês, a paralisia daquele corpo que, senão acalmava, ao menos mantinha a ação em suspenso; segundo, o seu empenho em revisar todas as variáveis que pudessem ter influenciado nas medidas do cliente; por fim, a irrefreável disposição do seu espírito para a procura de analogias, um vício que se sobrepunha até mesmo à dor. De imediato, a visão do freguês enfiado naquele descomedimento desencadeou comparações com uma série de objetos e imagens – um embrulho feito às pressas, as saias rodadas de uma mulher de duzentos quilos, um novelo após as unhas do gato, uma dessas fotografias antigas apresentando um menino aniquilado nos trajes de adulto, um balão inflando, a cúpula de uma catedral em ruínas, um pai desenhado pelo filho de cinco anos. 
“Um terno, senhor, nunca está completamente pronto, há sempre uma coisa ou outra para acertar” – um ausente pronunciou estas palavras, pois ao alfaiate jamais ocorreu romper o silêncio, absorvido que estava em determinar as semelhanças daquela vestimenta desmesurada com as fantasias dos palhaços e as roupas das aberrações dos circos de sua infância. Havia naquele enormidade de linhas e panos algo de uma vida separada do ordinário, algo de uma alegria explosiva e fugaz como um foguete, mas também algo da dor de quem só existe quando do espetáculo, depois fica invisível, algo de uma máscara cômica se desfazendo diante do espelho – com suas rugas, com seus lábios sem riso, com sua calva real – e que ninguém pode retocar.
A pala se esforçava para não despencar dos ombros, a braguilha entreaberta dava a ver os joelhos, as mangas por pouco não tocavam o chão, o colete parecia agasalhar o cliente como um xale avoengo; nem o somatório de todas as pences que fizera na vida seria suficiente para ajustar o cós à cintura; com a fazenda que sobrava das pernas da calça podia fazer outro paletó; era tarefa para dias recuperar os alfinetes utilizados na montagem, pois ou estavam perdidos nas dobras daquela terra ignota ou se esconderam do horror em algum acidente topográfico ainda não mapeado. Uma criança vestida com as roupas do pai tinha mais elegância; um Chaplin ou um Buster Keaton, mesmo após enfrentar um boxer, atravessar um campo minado e abater um ciclone, usava figurinos menos patéticos – aquele terno era uma gag mal realizada.
O alfaiate abaixou cuidadosamente os olhos, colocou a fita métrica em torno do pescoço, prendeu a almofada no pulso esquerdo, sem olhá-la, enquanto vencia os primeiros centímetros da distância incomensurável que o separava do cliente. Já não pensava em nada de preciso, mas tinha a sensação de que se demorasse mais para tirar o freguês daquele amontoado de tecidos ele se transformaria num dos objetos do atelier, pois a fixidez do seu corpo beirava o inumano, como se os músculos gradativamente fossem esquecendo até mesmo os movimentos involuntários.
“Ocorreu-me agora” – disse o alfaiate com uma intimidade que lhe causou menos estranheza do que vergonha – “contar-lhe que no velório de meu avô materno não houve qualquer comoção; era já bastante velho, não se podia nem se devia esperar mais, para uma vida discreta, do que uma morte discreta, diria até a morte ideal, sem sobressaltos nem viúva para as lágrimas, posto que minha avó falecera uns trinta anos antes. Contrariando as ordens de meu pai, não me aproximei do esquife logo ao entrar na sala, sentei numa cadeira isolada e me pus a ouvir os poucos adjetivos que os presentes reservaram ao morto... até que a mão paterna pousou sobre o meu ombro para só me abandonar junto ao caixão.
“Velávamos um estranho, não era de meu avô aquele corpo minúsculo como que à deriva entre as flores, não eram de meu avô aquelas mãos e aquele rosto, mas de uma criança prematuramente decrépita; eu sabia as dimensões dele, seria capaz de fazer-lhe um terno sem tirar as medidas, por isso me aproximei do pai para dizer que meu avô não estava ali, ele não caberia nos limites daquele caixão, e mesmo aquela família me era desconhecida. O pai me olhou severo, depois sorriu, colocou as duas mãos sobre os meus ombros e, com a condescendência que só os que já tocaram o céu têm para com os que, mesmo com as costas aliviadas de todo fardo, são incapazes de saltar um palmo acima do chão, disse em tom professoral: ‘Um homem tem que se haver com o próprio tamanho, filho’.”
O barulho da porta fez o ajudante descer às pressas do sótão, com gestos atônitos indagando se a representação já terminara, se o cliente já saíra, o que seria feito da última cena, afinal estava ansioso por pronunciar a sua única fala na peça, o gran finale; enquanto observava o movimento da rua através da vitrine, o alfaiate respondeu-lhe com alguns poucos sinais, a inércia de um diretor após a estréia unânime em apupos, o repouso nervoso de quem se preparava para uma longa jornada, ainda amedrontado com a agulha da bússola. “Falta-nos apenas a última prova, meu caro ajudante, a prova final” – disse o alfaiate, o tom melancólico de quem arrasta um horizonte, olhos fixos na porta como que esperando. Apenas para afirmar a sua presença, o ajudante pousou a mão sobre o ombro do alfaiate, sem saber o quanto pesava.
Fernando Fábio Fiorese: Poeta e contista. Autor de Dicionário mínimo: poemas em prosa (2003) e Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito (ensaio, 2003), dentre outros.


* Extraído do livro de contos Pequenas mortes, inédito.

2 comentários:

  1. É sempre um prazer poder fazer parte, de alguma forma, dos escritos de Maria da Conceição Pimentel! Se Deus quiser e o talento ajudar, vamos fazer carreira na literatura e muitas publicações!
    Beijo Grande!
    Eliza Granadeiro

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  2. Parabéns à autora de Dadaísmos e ao autor de Um Terno para K. Achei-os textos excelentes! Muito boa seleção, editores. Até a próxima.

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