A Revista Encontro Literário tem como objetivo a publicação de Contos e Poesias. Para isso, serão lançados dois números anualmente. Além disso, iremos diponibilizar informações referentes ao mundo acadêmico, cultura em geral e informações literárias. Nossa missão é fomentar a produção literária, compartilhar informações e incentivar o prazer da leitura.
é com prazer que trazemos ao conhecimento do público os textos escolhidos no certame do Edital 05/2013 organizado pela Revista Encontro Literário. Como estava previsto no edital, foram selecionados 03 (três) contos para serem publicados na página da revista. Esses textos serão exibidos em postagens separadas, logo abaixo desta. Estão dispostos em ordem alfabética segundo seus títulos, ou seja, a ordem em que são apresentados não corresponde a uma classificação.
Agradecemos a todos os participantes e aos leitores da Revista. Esperamos que vocês possam continuar participando dos nossos editais, além de acompanhar as postagens que são feitas mensalmente por nossos editores.
Informamos aos autores dos textos selecionados que o envio dos certificados de Menção Honrosa e do livro indicado no edital como premiação será feito até o dia 30/06/2013.
Relação de Contos Selecionados
Becos, de Teresa Margarida Pedrosa Cardoso O mundo de Macbeth, de Stefane Soares Pereira O quadro, de Ana Luiza Drummond
Um homem caminhava pelo deserto há longos dias. Seguia de joelhos,
parecendo empenhado como um pagador de promessas. Seguia concentrado
na paisagem que lhe surgia à frente. Imutável. Reveladora de uma
eternidade sufocadora. Seguia indiferente ao que deixava para trás,
ao que o ladeava. E, porque deveria ser diferente? Afinal, o homem
era um mero peão num cenário de quase-vácuo, pontuado por
ornamentos supérfluos que se repetiam e reciclavam. Era um peão
manipulado por um desejo forte de salvamento instantâneo, o que quer
que fosse que isso significasse: vida ou morte. O homem aspirava
somente a uma resolução milagrosa que o libertasse da sensação de
encurralamento. Porque, apesar de se estender à sua frente uma
infindável imensidão, havia muito que perdera a bússola. Havia
muito que suspeitava andar em círculo; havia muito que suspeitava
ter pisado vezes incontáveis as mesmas areias. Estava desorientado,
e a única força que o mantinha em movimento era uma crença. A
crença de que desistir de caminhar só o afastaria da concretização
do milagre que o haveria de libertar.
Entretanto, a sua pele travava batalhas épicas contra insectos
famintos e furiosos. Em breve, a aridez do clima faria surgir
espinhos à sua superfície e, acabaria por mimetizar um cacto. E, se
não encontrasse a saída, o homem e o ambiente não tardariam a
fundir e a confundir-se. Porque o deserto parecia um predador, movido
por um ávido desejo de engolir o homem. Era aquele silêncio que
ensurdecia; era aquele calor que inabilitava o raciocínio astuto;
era aquele ar denso que sufocava; era aquele vento que, por vezes, o
esbofeteava com punhados de areia.
Em momentos de cansaço, lágrimas misturavam-se com sangue e medo
com raiva. A sua mente ameaçava tornar-se numa arca caótica, onde a
fantasia tomaria o lugar da realidade, a ânsia de uma solução
imediata e a força para a procurar seriam substituídas por cobardia
e fraqueza. Deixar-se abandonar, secar, morder era uma ideia
recorrente, e demasiado apetecível em ensejos de desgraça.
Perseverar tornou-se um gradiente crescente de flagelos. Mexer-se
tornou-se uma odisseia amarga. Pensar tornou-se uma tortura. Via a
vida segmentada como se a visionasse numa película de filme mudo,
entre demorados piscar-de-olhos, e projectada sobre um fundo
negro e enfermo. Naquelas ocasiões, parecia-lhe que o passado e o
presente se enquadravam mutuamente. Num ápice, chegou ao topo da
escala da auto-comiseração e ergueu a bandeira do desespero. E,
veio-lhe do fundo do seu coração esquartejado, uma necessidade
imperiosa de desembaraçar o mundo de si, de expurgá-lo de qualquer
prova da sua existência. Se ao menos o seu coração fosse uma
sombra, um vulto diáfano…
Até que…se deparou com um oásis. Foi uma réstia de água, foi a
sombra fragmentada de uma palmeira mas, foi sobretudo o consolo da
novidade na paisagem que lhe deu um novo impulso, que lhe ressuscitou
a esperança, quase morta, num destino sensato e profícuo. E, foi
então que decidiu jamais voltar a duvidar, a hesitar, a congeminar
uma desistência. Ao contrário, restabeleceu-se e reergueu o seu
corpo. Gritos oriundos das profundezas do seu âmago retaliaram a
morte outrora anunciada. O calor da areia quente sob os pés
incitou-o a correr, a saltar, a voar. Uma antiga bênção celta
escapou-lhe por entre os lábios: «Que a estrada se erga para te
encontrar, que o vento esteja sempre nas tuas costas, que o sol
brilhe quente na tua face, que a chuva caia suavemente no teu campo,
e até te encontrar de novo, que Deus te guarde na palma da Sua mão.»
E, um dia, depois de muitos dias iguais, recheados da mesma areia, do
vento derrubador, de insectos sanguinários e de securas letais,
encontrou a porta do mundo. Foi uma descoberta tão inesperada, que o
homem se sentiu inábil e ignóbil. Sentiu-se frágil e hesitante. E,
se a porta escondesse pesadelos maiores? Não, não! «Jamais voltar
a duvidar, a hesitar, a congeminar uma desistência.» foram as
palavras que instantaneamente assaltaram o seu cérebro confuso,
tornando explícito o seu dever. Abriu a porta. Maravilhado com o
cenário que se espraiava diante dos seus olhos, deu um passo. E,
porque não se apercebeu do buraco profundo que o separava do cenário
encantatório que o cegava, caiu.
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* Teresa Margarida Pedrosa Cardoso tem 33 anos. Nasceu e vive em Portugal. Licenciada em Biologia e doutora em Bioquímica, trabalha como professora universitária. Apesar de possuir um conjunto de textos em poesia e prosa escritos, publica somente trabalhos de caráter científico. Antes da participação na Revista Encontro Literário, apenas em uma ocasião havia publicado um dos seus trabalhos de índole literária. Isto aconteceu no âmbito de uma ação promovida por um agente cultural com o objetivo de aproximar a poesia dos habitantes da sua cidade.
Dizem que a partir de uma era denominada moderna a humanidade passou a ter consciência das barbaridades que tencionaram na vida do outro. Retomaram as tragédias gregas e as esboçaram em arte, em beleza e encantamento. O saber humanista expandiu-se também para as leis e os bárbaros subiram ao palco grego e dançaram em alegria amistosa e aspiraram à liberdade.
E muita fé religiosa e não religiosa conspirou em corações ansiosos de esperança. E essa crença persistiu em meio a artigos e pronunciamentos políticos. Até que um dia pedi que as estrelas escondessem suas chamas, e que não deixasse sua luz irradiar em meus desejos sombrios e profundos.
Era eu o presidente da Comissão dos Direitos Humanos e da Cidadania. Eu que um dia me encontrava em meio a papeis e jornais e livros que a elite jogava fora. Eu que não tinha nada comecei a lê-los e imaginar que um dia eu também estaria no jornal, eu também faria diferença no mundo. Fiz vestibular e cheguei onde queria. Nunca senti medo da minha natureza. Alçar grandes voos era o meu destino.
Casei-me e estava feliz. Ganhava muito bem, trabalha três dias da semana e amava as férias na Europa. Mas não algo me dizia que mudanças deveriam acontecer. Como uma profecia as forças do mal já prediziam, desde minha infância, minha indignidade.
Com alta idade testava os sentimentos psicopatas abusando das garotinhas lindas que estavam da puberdade, assim como das mães das mães das mães e também dos garotinhos de classe média que amam voltar tarde para casa. Procura uma explicação freudiana para além do mal. Todavia, não encontrei. Então quando virei gente resolvi fingir que era uma pessoa comum. Até que me cansei.
E então quando eu atingi a agulha da torre eu resolvi expor todo o meu veneno. Ultrapassar constituições e afirmar meus ideais publicamente. Minha aversão aos negros, aos homossexuais e, claro, também as mulheres, embora eu as amasse como minhas servas. Sempre as escolhi para poder manipulá-las e afirmar minha masculinidade.
A humilhação me alimenta. Negar as férias dos empregados, o repouso, o lazer, colocar criança para trabalhar, se for escurinha então que sustento! Punir meu próprio filho porque ele espancou um pedinte? Jamais! Há pessoas que não tem direito à vida. A legislação faz essa imposição porque sabe que não funciona na prática. E quem fomenta o cumprimento desses direitos acaba perdendo, a vida.
O capitalismo se institui e permanece não porque as pessoas querem ser solidárias. Se o fossem seríamos comunistas! Por isso sou homem das leis, assim como muitos são homens da vida, os quais podem decidir o quanto de despesas a sociedade deve produzir e o quanto de lucro deve gerar para seus usufrutos.
A cobiça nos nutre e para isso devemos nos silenciar quando somos beneficiados, silenciar quando o outro é injustiçado e sorrir para todo o todo, afinal, cada um vive por si. Assim, cheguei ao auge, mas logo o mundo me mostrou que a soberania não me pertencia, ela não me é suprema; quando os pequenos me mostraram que mesmo agindo a meu favor ininterruptamente um dia eu mesmo encontraria o meu inferno dantesco. E antes desse artifício minha esposa me trapaceou, prendendo-me em uma ilha sombria, perseguidora e tenebrosa.
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* Stefane Soares Pereira, vive em Juiz de Fora. É mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Doutoranda da mesma instituição.
É possível que um dia eu me apaixone pelas obras de Pollock. Isso já me aconteceu antes. Passei muito tempo odiando Borges, acusando-o de pseudoescritor, simplesmente por que não entendia bulhufas de seu Tlön. Familiarizei-me com ele após a 5ª leitura, hoje já devo estar na 15ª; daqui a um tempo o decoro, mas ainda me custa sua amplitude desgovernada. Pois é, mas enquanto isso, continuo odiando Pollock e seu estrelismo medido, contrário aos seus pingos e riscos (por mais que ele negue). É por isso que estou agindo dessa forma (gosto disso mais do que acredito e menos do que não espero?). Mantenho-me distante, do outro lado da sala, e espero pela resolução da cena. Já explico: essa é sua primeira exposição e ele está orgulhoso de si, embora demasiadamente nervoso. Não nego que talvez, no início, eu tenha tentado desencorajá-lo. Penso mesmo que cheguei a dizer que via Pollock em seus quadros, sabendo eu que sabia ele minha repulsa. Sou uma pessoa sem o gift do inglês, embora me sobre o do alemão (sempre me apeteceu esse péssimo joguinho, pois que fique!). Não tenho problema algum com a arte moderna, embora me encante a l’art pour l’art. O problema é que eu não considero nenhuma de suas obras como arte. Ele se prepara, eu o encaro. Baixa-se, então, o pano. Sua mais recente e estimada obra, que ninguém, exceto ele, havia visto, está exposta. Ponho-me diante dela e a miro, com toda minha força. Um jato de gargalhadas jorra de dentro de mim sem que eu consiga obstruí-lo. Saio em retirada molhando e contaminando a todos os presentes, que ao mesmo tempo se unem a mim naquela sensação molhada de não sei quê. Passo por uma porta entreaberta e vejo-me numa sala difusa. Ao mesmo tempo, entra a correnteza dos demais. Não consigo me controlar e temo pelo pior: sua reputação. Eu o amava. Mas então, que fazia eu? Ao me perguntar, acabei percebendo. Na verdade, eu não fazia nada. Ele é quem fazia! Não havíamos apenas mirado sua obra: estávamos dentro dela! Ele? De costas, do outro lado da porta, ia se retirando enquanto nos afogávamos.
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* Ana Luiza Drummond nasceu em Ferros, Minas Gerais, em 1988. Atualmente cursa Bacharelado em Estudos Literários e Licenciatura em Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Ouro Preto e é professora de Língua Portuguesa na Escola Estadual Cônego Braga. Publicou recentemente o conto “O pio da coã”, na antologia de contos Fantasiando, além de crônica em revistas semanais. Possui ainda artigos publicados na área da Literatura e da Educação.
Talvez os leitores se lembrem que ali pelo mês de outubro/2012 fizemos uma postagem sobre a Coletânea Quinze Contos Mais. Naquela ocasião, dois editores da Encontro Literário - Raphael Reis e Ailton Augusto - tiveram trabalhos selecionados para participar da publicação.
Pois bem: agora a possibilidade de participação no Quinze Contos está aberta novamente e se você não mandou seu conto para nós da Encontro Literário ou tem outros escritos guardados, pode participar da Chamada 01-2013, que a Helena Frenzel já colocou no ar.
LA
EDUCACIÓN prohibida. Realização integral: German Doin. [s.l.],145 min., legendado.
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=-1Y9OqSJKCc.
Acesso em: 21 mar. 2013.
Divulgado
na internet a partir de agosto de 2012, o filme-documentário La
educación prohibida
apresenta algumas experiências que ousaram transgredir o modelo
educativo tradicional, constituindo-se em um tentador convite à
reflexão sobre a instituição escolar e as práticas educativas.
Trata-se de um material particularmente indicado para professores que
já atuam em sala de aula ou que ainda estão se formando e, também,
para todos aqueles que desejam um futuro livre para seus filhos,
sobrinhos, primos e conhecidos.
Aliás,
um futuro sem embaraços parece ser a preocupação dos idealizadores
da película, que a dedicam “às crianças e aos jovens que desejam
crescer em liberdade”. A trama é composta por uma história
fictícia de fundo, perpassada por recortes de entrevistas feitas com
especialistas de países ibero-americanos. Nesta história de fundo,
é apresentado um confronto entre docentes e alunos motivado pelo
desejo destes últimos de ler um texto dito “ofensivo” numa
comemoração que está por realizar-se na escola. Tal caracterização
do texto se baseia nas suas fortes críticas à ausência de vínculos
entre escola e vida. Para os alunos que o escreveram, a educação
que prepara para a vida está proibida.
Partindo
dessa situação, enfoca-se o status da instituição escolar. Embora
a educação seja um tema importante, que mobiliza debates e
investimentos os mais variados, existe uma uniformidade de práticas
(apesar da multiplicidade de escolas existentes) que se orienta,
quase que exclusivamente, para a formação de trabalhadores,
relegando a formação do ser humano a segundo plano. Isso explicaria
por que, nas palavras de Carlos Alberto Jiménez Vélez,
neuro-pedagogo colombiano, as escolas e colégios latino-americanos
não são mais que “espaços de tédio e aborrecimento”.
No
entanto, a escola que conhecemos não existe “desde sempre” e o
filme faz uma breve digressão histórica para explicar o surgimento
do conceito de educação pública, gratuita e obrigatória no final
do século XVIII na Prússia. Além disso, é explicitada a
conveniência do modelo educativo atual para as sociedades
industriais, que fizeram da escola um espaço de reprodução
simbólica serializada; uma grande linha de produção. Diante deste
quadro, o chileno Rafael González Heck destaca o mote do filme:
“Toda educação que busque algo diferente tem que ser proibida”.
Feita
esta introdução, o documentário dirige sua atenção para a
diferença que se estabelece entre a escola (estes “espaços de
tédio”) e a educação ou, melhor dito, o processo de aprendizado.
Expõe-se o fato de que as crianças são predispostas a aprender,
sendo desnecessária e até nociva a intervenção dos adultos
através do processo educativo que nós conhecemos. Um dos
entrevistados, o espanhol Juan Pere, explica que focalizar os
objetivos educacionais (aprender a escrever o próprio nome, por
exemplo) desvia nossa atenção e “deixamos de enxergar a criança
para tentar adaptá-la aos objetivos impostos”.
O
filme trata ainda de outros temas, como a tendência da escola a
homogeneizar os alunos, desrespeitando o ritmo da criança. Para
resumir, citamos a assertiva do pediatra espanhol Carlos González:
“tudo o que a criança faz está inadequado, se espera que ela seja
uma criança protótipo”.
Outro
dos temas tratados que nos importa destacar é a questão da mudança
de paradigma do professor. Para fomentar o pensamento sobre o papel
do docente, colocam-se algumas perguntas cujas respostas são,
obrigatoriamente, muito pessoais. Por exemplo: o que sinto quando
estou educando?
Após
um cortejo de situações que impõem a necessidade de refletir sobre
o modelo educativo em voga, o filme termina com a leitura do texto
sobre a educação proibida, aquela que não se escreve em nenhum
caderno. Este texto, que veio sendo debatido na história de fundo,
faz mais que defender a educação que ficou de fora das escolas, ele
nos acusa: “Acreditamos que a educação está proibida não por
culpa dos familiares, não por culpa das crianças, nem por culpa dos
docentes. Todos proibimos a educação”.
A
título de conclusão, podemos dizer que, se ainda não podemos
prescindir da escola, o filme nos leva a desejar que possamos ao menos prescindir dos males da
escolarização excessiva. É esse o compromisso que nos vemos em
posição de assumir após assistir La
educación prohibida.
Pós-escrito: Se faltam a este texto as "marcas autorais" que permitiriam irmaná-lo às demais colunas que escrevo para a Revista Encontro Literário é porque, originalmente, ele foi escrito como avaliação para uma das disciplinas que cursei na UFJF no último período. Aproveito o ensejo desta explicação para colocar o trailer oficial do filme acima resenhado:
Os livros guardados nas prateleiras de Maria Lúcia Ribeiro, vez ou outra, tornam a repousar em sua cabeceira. Sobretudo os clássicos, que, segundo a doutora em teoria da literatura, suportam várias leituras. "A releitura é, na verdade, uma nova leitura. Você escolhe um livro para revisitar um personagem ou para ver se ainda gosta dele e, muitas vezes, descobre que parece que nunca o leu", diz. Para ela, o primeiro contato com as linhas do texto servem ao "reconhecimento do terreno", a um mapeamento da história. Mas as diversas possibilidades de sentidos, os detalhes que se escondem em cada página, só são apreendidos posteriormente. "Não que a primeira leitura não seja capaz de te levar a alguma compreensão. Mas os sentidos mais amplos de tal obra vão sendo construídos sobre os sentidos iniciais", avalia.
"Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, é um dos clássicos que está sendo revisto pela pesquisadora, assim como os escritos de Rubem Fonseca e Clarice Lispector. "Depois de alguns anos, estou amando lê-los mais uma vez", enfatiza Maria Lúcia, que diz dedicar boa parte de seu tempo à tarefa.
O hábito de reler livros e rever filmes - comum a muitas pessoas - despertou a curiosidade da professora Cristel Antonia Russell, da Amercian University, dos Estados Unidos. Com base na pesquisa publicada no "Journal of Consumer Research", que contou com entrevistas de pessoas de várias faixas etárias, a especialista identificou as razões para o que chamou de "reconsumo" de obras, bem como os benefícios da prática.
Segundo Cristel, o hábito pode estar vinculado à necessidade de encontrar camadas de significado mais profundas. O "reconsumo", mais que uma tentativa de reviver o passado, é uma busca que pode levar a grandes descobertas pessoais. O mercado se esforça para lançar histórias sempre frescas, mas, segundo constatou a PhD em marketing, deveria voltar seu olhar às velhas experiências, que são também aptas a abrir novas perspectivas.
A releitura de uma obra preferida permite o confronto entre as interpretações do material em distintas fases da vida. O estudo de Cristel cita como exemplo a história de um dos participantes, um pastor evangélico, que releu a Bíblia inúmeras vezes ao longo da vida. O pastor constatou que, de acordo com sua idade, interpretava as passagens de modo diferente, um sinal de amadurecimento.
Tal contraste entre o "eu atual" e o "eu do passado" é ocasionado pelos novos olhares que só vêm com a maturidade, segundo a professora do CES, mestre em psicologia, Ana Maria Mattos de Andrade. "Além da possibilidade de poder ter uma visão mais profunda sobre o tema e seus desdobramentos, as conexões que são feitas a partir de acontecimentos da atualidade estarão mais atuantes nessas novas interpretações", acrescenta.
O tempo foi fundamental para o trabalho do poeta e professor da Faculdade de Letras da UFJF, Alexandre Faria. Os versos escritos aos 17 anos só foram publicados 25 anos depois, em 2012, em "Lágrima palhaça", que tem selo da Aquela Editora. Os originais, esquecidos em um caderno com o desenho de um circo a lápis na capa, foram submetidos, segundo o autor, a um processo de "laminação". "Fui sobrepondo camadas de silêncio, e permanecem apenas alguns sons, ou imagens ou frases", constata.
Reler os textos - e lapidá-los tantos anos após sua criação - foi para o poeta um "reencontro". "Um reencontro com alguém que tinha sido e que - felizmente - não deixei de ser." A releitura despertou questionamentos sobre o envelhecimento e, em mesma proporção, sobre o rejuvenescimento, já que tantos traços pessoais permanecem, de certa forma, intactos. Já em relação à poesia, o autor revela ter se deparado com uma transformação brutal. "Eram versos longos, cheios de rimas", conta. "Foi um desafio rever o moleque de antigamente."
Em seu processo de criação, o poeta destaca a releitura constante, essencial ao fechamento do trabalho, mas não cultiva o hábito de rever sua obra após a publicação. "Acredito que depois de publicado meu trabalho alcança uma cristalização." O mesmo não acontece, conforme ele, com outras obras literárias, cujo processo de descobertas permanece em aberto. "Machado de Assis, por exemplo, é um dos autores que sempre releio", diz.
Outros motivos são apontados para explicar o recorrente hábito de revisitar obras literárias ou cinematográficas com frequência. Pesquisas apontam que indivíduos "consomem" o mesmo produto porque o cérebro já sabe a recompensa conquistada a partir desse contato, como a satisfação, o relaxamento e a alegria. "Muitas vezes as obras de arte se relacionam a momentos marcantes, são pontes que nos levam às sensações de determinada época da vida", ressalta a psicóloga Ana Maria. "A arte tem muito a ver com a contemplação, processo que pode levar tempo e ser repetitivo", acrescenta.
A repetição aparece como um método de estudo e memorização, que culmina em aprendizagem, outro caminho que nem sempre é consciente. "Nisso a criança é muito sábia", pontua Maria Lúcia Ribeiro. "Quando ela escuta o disquinho de músicas dela ou assiste a um DVD de um desenho animado, não dá muita bola da primeira vez. Mas ela repete, repete, repete e começa a se encantar com ele, logo o sabe de cor", exemplifica. "Se você conta uma história de determinada forma e, em uma segunda vez, muda alguma coisa, ela vai te dar uma bronca. Ela insiste porque, assim, aprende. Ora, conosco não poderia ser diferente", conclui Maria Lúcia.