Edição n° 3, junho de 2012


Edição n° 3, junho de 2012

Prezados leitores,

é com prazer que trazemos ao conhecimento do público os textos escolhidos no certame do Edital 03/2012 organizado pela Revista Encontro Literário. Como estava previsto, foram selecionados para serem publicados três contos da categoria juvenil e outros três da categoria adulta. Esses textos serão exibidos em postagens separadas, logo abaixo desta. Estão dispostos em ordem alfabética, ou seja, a ordem não corresponde a uma classificação.

Pedimos, mais uma vez, desculpas pelo atraso na divulgação do resultado do edital, mas o volume de trabalhos recebidos foi bastante alto, superando nossas expectativas. No total foram 134 textos, vindos de várias partes do Brasil: MG, DF, SP, BA, RJ, PR, SC, MS, RS, CE, ES, PE, PB, SE, PI, GO, PA, RO, RN e AC. Tivemos também participações internacionais, enviadas por brasileiros que vivem na Alemanha, no Japão e na Suíça, além de textos enviados de Portugal.

Agradecemos a todos os participantes e aos leitores da Revista. Esperamos que vocês possam continuar participando dos nossos editais, além de acompanhar as postagens que são feitas mensalmente por nossos editores. Aproveitamos para lembrar que o próximo edital, 04/2012, será dedicado à poesia e estará aberto a partir do próximo mês de agosto.

Relação de Obras Selecionadas (por categoria)

Categoria Juvenil:

A caçada, de Julia Cedro de Oliveira
Balinha de maçã, de Clarissa Damasceno Melo
O rei das ruas, de Igor Gonçalves de Oliveira

Categoria Adulta:

Abandono, de Gilson Morais
Conto tirado de um poema de Bandeira, de Waldyr Imbroisi
Mundinho branco de talco de vó, de Luci Ponte

Informamos aos autores dos textos selecionados que o envio dos certificados de Menção Honrosa e dos livros indicados no edital como premiação de cada categoria será feito até o dia 30/09/2012. 


Categoria Juvenil
A caçada
por Júlia Cedro de Oliveira*


     Eu sei que deveria correr enquanto ainda tenho chances, mas por um motivo que não sei qual, eu fico paralisada atrás da porta do meu quarto, ouvindo os Caçadores conversando com meus pais. Eu sabia que eles viriam me buscar, só não sabia que viriam tão cedo.
      Foi aos 12 anos que percebi que era diferente dos outros. Estava na escola e minha melhor amiga veio em direção a mim, pedindo um lápis de cor emprestado. Eu poderia estar louca, talvez fosse só a minha enorme imaginação, mas posso jurar que ouvi o pensamento dela. Neste dia percebi que conseguia ler os pensamentos das pessoas ao meu redor e percebi que minha melhor amiga na verdade não gostava tanto de mim como imaginava.
     Cheguei em casa chorando e contei aos meus pais o que tinha acontecido, desde o momento que consegui ler o pensamento da minha amiga até quando essa amiga passou a ser minha inimiga. E então eles me contaram tudo que até então eles tentaram esconder de mim.
      Eu era um experimento aparentemente falho do Governo. Quando nasci eles poderiam ter me jogado fora como algo que eles não queriam mais, algo que antes era encantador, mas que agora se tornou fútil e repulsivo. Esse casal acolheu-me e tratou-me como se eu fosse uma filha para eles, como se eu fosse humana.
       O Governo estava errado e o que acontecera na minha sala de aula era uma prova disso. Eu não era falho, meu DNA apenas demorou em aceitar a modificação que eles estavam tentando fazer. Demorou um pouco mais do que a paciência deles pôde esperar. Só que não sou mais fútil como antes, agora eu posso até ter uma utilidade para eles e eles virão atrás de mim.
      E finalmente esse dia chegou. Meus pais adotivos estão nesse momento tentando convencer os apelidados por mim como Caçadores de que não estou dentro daquela casa. Não dá para enganá-los, meus pais só estão me dando um tempo para fugir. Mas eu não consigo sair do lugar. Não consigo deixá-los sozinhos depois de tudo que fizeram por mim. Eu sei o que os Caçadores podem fazer com eles, e essas coisas não são boas.
         Um barulho de tiro me tira do meu devaneio e me traz de volta para a realidade. Os Caçadores não podiam simplesmente me descartar e pegar de volta na hora que quiserem, eu não sou um brinquedo. Sei que não sou humana, mas conforme o tempo eu criei compaixão por eles.
      Minha raiva fez com que meu sangue bombeasse mais rápido em minhas veias e que minhas mãos abrissem a porta na minha frente. Passei os olhos pela sala de estar para saber o que o tiro acertou. Deixei um suspiro de alívio sair da minha boca quando vi o que foi acertado: um vaso de flores estava estilhaçado no chão. Meus pais estavam em pé um do lado do outro e eu não precisava ler suas mentes para perceberem que eles estavam assustados.
          Coloquei-me na frente deles, a fim de protegê-los.
       - E vocês disseram que ela não estava em casa hein? – uma voz áspera e rude saiu de um dos dois Caçadores, apontando uma arma para a cabeça da minha mãe e o outro apontando para a cabeça do meu pai.
      Encarei a arma assustada. Eu sei que posso ler as mentes, mas por algum motivo as mentes deles estavam bloqueadas. Mas é claro que viriam preparados. Cerrei os punhos com raiva da minha própria estupidez e algo que os dois Caçadores viram em mim os fez recuarem. Continuava a encarar as armas nas mãos deles. Eu não podia desistir tão fácil.
         - Cuidado, a coisinha está nervosa – os dois agora desviaram a mira das armas para outro alvo.
        O perigo não era os dois humanos frágeis atrás de mim. Sou eu que tenho o poder desconhecido. Não pude deixar de soltar um riso contido.
      - EU. NÃO. SOU. UMA. COISA – gritei pausadamente, tentando recuperar o ar que perdi durante esse meu ataque de cólera.
        E algo aconteceu. Os corpos dos Caçadores começaram a pegar fogo. Dei um passo para trás fazendo com que meus pais também recuassem. Olhei para todos os lados, alarmada, procurando a fonte do calor que fizera aquilo, mas não havia nada que pudesse fazer com que aqueles corpos musculosos queimassem com tanta facilidade, e mesmo que tivesse, eu e meus pais também estariam se dilacerando lentamente no fogo.
        - Fui eu – disse em quase um sussurro.

Estávamos livres dos Caçadores.
Por enquanto.


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* Julia Oliveira, 15 anos, estudante do primeiro ano do Ensino Médio. Gosta de ler e sonha em publicar um livro um dia. Tem um blog literário (http://wakeupthe-world.blogspot.com) e ainda acredita que pode mudar o mundo para melhor. Protetora dos animais, gostaria de pegar todos os cachorros de rua e levá-los para casa. Contato da autora: juliacedro@ig.com.br

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Balinha de maçã
por Clarissa Damasceno Melo*


     Horas passavam sem que se mudasse o tempo. E cada pedaço desse pouco tempo era um pedaço de céu arrebentado. E o tempo se congelava e se derretia sem que as previsões alarmassem. Esse era um novo tempo. Dele, só dele.
      Ele que gostava de correr... Estava correndo. Em velocidade máxima, puxando todo o ar que cabia em seus pulmões e soltando como se fosse a última vez que pudesse fazer isso. Ele corria, não com pernas, mas de mãos dadas, de braços inertes, de costas coladas no lençol, de suor no rosto, de dor no peito. Correr ele corria, contra o tempo. E quanto tempo faltava, ele não sabia. Só sabia que faltava tempo para... a natureza agir.
     De qualquer maneira, preferia ter sua alma solta ou presa nas nuvens, ou em um céu de estrelas. Tão limpas e tão brilhantes que ele desejaria explodir com elas. E ele correria para estar lá. Mas não hoje. Nem que se precisasse suar o dobro, ou doer o dobro, hoje ele só queria apertar a mão de sua mãe mais forte e mais forte até que pudesse sentir seu sangue aquecido. Por que até o calor fugiu dele. E a vida dele pulsava suas tão últimas horas. Horas dele, só dele.
      Doente, seu cabelo caíra com o tratamento que o deixava enjoado. Quando a família soube, choraram todos juntos. E toda a força e toda a fé e toda... É um muro de pedra cinza, veluda e forte. E a maciez dos dias em que viveu tornou-se rígida. Ele acordava e dormia sentindo falta de Deus. E Deus estava lá, escondido entre as nuvens, comandando rebeliões e revoluções tão nossas, e tão dele.
      E, por todo o universo, as únicas estrelas que brilham um dia tiveram de morrer. Só não sei se a morte brilha. Mas é verdade, se explode para que o brilho seja intenso. E uma cascata de nuvem prata talvez perpasse por nossos olhos e os feche devagarzinho até que... até que se possa brilhar.
       Orações sem fé não podem agarrar a carne crua e imóvel. E suas orações tinham poder mágico. Mas ele não acreditava em magia, nem no amor do mundo por ele. Velhos amigos sumiram... aqueles da faculdade, que estudavam com ele, e viajavam com ele, e dançavam com ele... Ele foi capaz de esquecer todos os seus rostos. Menos de uns dois ou três.
      Agarrado ali na sua mãe, puxando forças esgotadas e arrepios de carne, olhou pro dia lá fora pela janela: é verdade... estava coagulado! Estava feito uma gelatina em cima daquela cama. Do jeito de uma criança que fora proibida de sair. Ele seria uma boa criança se conseguisse se levantar. Mas, se levantasse, não ficaria de pé. Nem suas pernas se mexiam.
      Piscou suas pálpebras arroxeadas para a mãe. E toda mãe é capaz de ouvir o coração gritar desanimado. Ela levantou-se, soltando dedo por dedo de seu filho com a maior cautela do mundo. Abriu a bolsa e elas estavam lá, pequenas balinhas de maçã verde. Abriu uma e, com igual cautela, a pôs na boca de seu filho.
     Sentindo a saliva adocicada escorrer por sua boca, sentiu o salgado daquele momento se amenizar. Ele sorriu tranqüilo e brilhante. Era isso que ele queria: ter uma mortezinha doce. Tão doce como aquela. Sorriu mais umas três vezes para a sua mãe e, então, o véu de prata pareceu fechar-lhe os olhos. Talvez agora ele pudesse escalar as nuvens e de lá explodir como uma estrela que morre, que brilha e que é vista aqui da Terra.


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* Clarissa Damasceno nasceu em Itabuna, na Bahia, no ano de 1995 e criou-se em Itajuípe, cidade circunvizinha. Quando pequena, é notado o hábito de inventar pequenas estórias. O amadurecimento surge no segundo ano do ensino médio ao ser criticada por um professor que duvida da genuinidade de seus contos. No ano de 2012, já foi selecionada no concurso Valdeck Almeida de Jesus, que ocorre anualmente no estado da Bahia. Ganhou o terceiro lugar no concurso minicontos para Dickens, grande homenagem ao 200º aniversário de Charles Dickens, teve um de seus contos selecionados para a antologia 'Entrelinhas II', dentre outras menções. Contato da autora: melo_caca@hotmail.com

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O rei das ruas
por Igor Gonçalves de Oliveira* 


    Acordo com os sons dos pássaros, a luz do sol reflete em meus olhos, me espreguiço e então dou um pulo da cama. Pela manhã, como um taco de pão com um gole de leite e vou brincar de ser capitão.
    A casa na árvore, o meu barco, um cabo de vassoura, a minha espada e estou a navegar em um mar de sonhos. Ventania forte se transforma em tempestade e uma carroça entulhada no fundo do quintal é o barco adversário. O gramado é o oceano que se limita a um cercadinho de madeira e a vida se torna um sonho de criança.
    Estou a imaginar na casa da árvore até ver pela minha luneta de capitão um cachorro vira-lata entrando por debaixo do cercado. Então, o barco volta ser apenas uma casa na árvore, o gramado é apenas um gramado e a carroça é apenas um entulho. Não avistei somente um vira-lata ignorado por muitos, avistei ali, naquele cão de rua de olhos profundos e de face tristonha, um novo amigo.
     O cão sem valor, como muitos diziam, entrava espremido por debaixo do cercado por um caminho que ele havia feito após tanto cavoucar a terra preta. Após sair do buraco feito, levantou rapidamente meio sem jeito, sacudiu-se para tirar a terra e deu alguns passos desconfiado, mas logo levantou a cabeça, instigou o olfato e começou a cheirar a grama verde. Andava com orelhas em pé até achar um saco de lixo perto da carroça. Começou a futricar, despedaçou uma caixa de leite e a lambeu, agarrou um pedaço de tomate e logo se deliciava com um taco de pão.
     Não aguentei a ansiedade e logo desci escada abaixo para ver o cachorro. Dei alguns passos desconfiado e, um pouco ofegante, cheguei perto do cão, que, ao perceber que eu estava ali, logo escondeu o rabo entre as pernas e correu para debaixo da carroça. Agachei e o vi escondido atrás da roda da carroça, dava para ver o olhar de medo do cão. Vasculhei o lixo e peguei uma sobra de arroz queimado - parecia horrível, mas era o que tinha perto. Ofereci em minhas mãos a sobra de arroz, o cachorro desconfiou, saiu de trás da roda com um olhar atento, chegou um pouco perto, deu uma fungada, uma lambida na sobra e logo começou a se lambuzar com  o arroz queimado.
    Eu não sabia de onde ele havia vindo, nem seu passado. Conhecia muito menos seu futuro, mas desejava que ficasse comigo. Mas, ao terminar de lamber minha mão, ele simplesmente aproximou-se de mim, humildemente lambeu-me o rosto e se foi sem me dar uma pequena chance que fosse de lhe cuidar...
   Nunca mais o vi, mas eu o compreendia: aprendeu a ser livre, a sobreviver nas ruas, se escondendo do perigo e encarando-o quando fosse necessário. A vida lhe fez forte e corajoso...
     A vida fez dele o rei das ruas.

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* Igor Gonçalves de Oliveira é estudante do 1° ano do ensino médio. Tem 15 anos e há dois anos começou a escrever como hobby e paixão. Em seus textos tento descrever de forma simples e compreensível fatos do cotidiano e procura observar poesia nas coisas simples da vida. Em 2011 obteve o segundo lugar no concurso de Redação da 3° Caminhada pela Paz, de Valparaíso de Goiás.

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Categoria Adulta

Abandono
por Gilson Morais*

    Pedro Fortunato chegou do trabalho e descobriu que sua casa o abandonara.
    Ficou uns momentos parado na calçada observando o terreno vazio diante de si, totalmente vazio não fossem algumas telhas derrubadas no calor da fuga e sua mala deixada a um canto de muro. Caminhou até lá. Dentro, suas roupas e alguns objetos pessoais. Nenhum bilhete, nenhuma notícia, só o puro abandono. 
     Arrastou a mala até a calçada do vizinho e sentou sob a castanheira, que não quis comentar o fato. Teve que se contentar com o silêncio da noite e a solidão que o envolvia como um manto frio. 
     Ele era um vendedor. Vendia arruelas. Era muito diligente com seu trabalho: elaborava tabelas, agendava treinamentos, estudava os catálogos, vivia discursando a quem não quisesse ouvir sobre a importância delas para o progresso. Sabia tudo sobre arruelas. Na juventude ele era uma mente revolucionária, inquieta. Estava sempre à frente nas reivindicações da turma da escola, do bairro, de qualquer associação com que simpatizasse. De decepção em decepção caiu no mundo incrível das arruelas. Casou e fez família.
    Pedro Fortunato tinha três filhos. O mais velho fora morar num país distante e nunca mandava notícias. O mais novo optou por se mudar para uma cidade próxima: precisava estar ao alcance de um depósito bancário. O do meio arranjara um casamento como desculpa para sair de casa e trabalhava muito para satisfazer os caprichos da esposa. A este não sobrava tempo para amenidades familiares. A mãe dos três, vendo o lar vazio, não mais enxergou sentido em morar com um homem seco e sem poesia. Mandou uma mensagem à irmã ("...saí ao mundo, fui respirar...") e não se soube mais dela. Pedro Fortunato continuou na casa, mas agora ela também partira. 
     Cabeceou toda a madrugada, sentado no meio-fio. Com os primeiros raios de sol da manhã levantou e viu que estava descalço. Ainda flagrou seus sapatos e sua mala dobrando a esquina, apressados. Não ia rebaixar-se a persegui-los. Que fossem. 
    Caminhou o dia todo, de mãos dadas com a chuva que caía. Não encontrou rostos conhecidos, nem abrigo, nem a fome. Todo o propósito o deixara e, com a volta da noite, a vida resolveu ir embora também. Só a chuva permaneceu ao lado do seu corpo frio. Ninguém sabe quanto tempo levou, mas, por fim, o enterraram num buraco já superlotado no cemitério. 
       Seu Aristides, o coveiro, registrou reclamação três vezes. Não quer mais reenterrar aquele cadáver deplorável, a teimar, toda semana, em sair de sua cova. Um cadáver que os vermes não roem e os animais da noite evitam. Seu Aristides só sabe que aquilo o assombra e já avisou: se ninguém tomar providências vai deixar aquela carcaça lá, no chão, à vista de todos, abandonada.

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Gilson de Oliveira Morais Junior é paraense. Empresário, graduado em Letras e leitor ávido, ele é integrante do grupo Oficina de Escritores, na Internet, desde 2010, onde vem trabalhando sua escrita, caracterizada pelos elementos fantásticos inseridos nos temas cotidianos. Contato do autor: gilson_moraispb@yahoo.com.br

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Conto tirado de um poema de Bandeira
por Waldyr Imbroisi*

    Lá estava João Gostoso diante da lagoa, ébrio, sóbrio já da vida, passo vacilante e voz ainda por sair. Era afinal sua última hora, e ali lembrava com um sorriso parvo do resto da noite, do pouco que teve de vida: seu riso trazia de volta o bar, os jovens, as garotas e o movimento daquele instante que apenas o poeta soube valorizar tanto, com três verbos só, o momento que o jornal não será capaz de captar com clareza amanhã, sobre o qual nem João sabia o que dizer, seu único idílio, sua única e efêmera Pasárgada, seu porquinho da Índia a anunciar-se tímido e escorregadio, a letargia da bebida a estuporar-lhe os músculos, a vivacidade da dança a empolgar-lhe a alma, a dissolução gradual do super ego que lançava-lhe a cantar, a doce loucura do final da vida, a dor pobre muito pobre e a agreste alegria de quem sabe que vai morrer. Não tinha mais nada que se lembrar, mas vinha-lhe à cabeça a contragosto as imagens dos dias, as dores no corpo, as humilhações sofridas nas palavras ásperas dos patrões e dos transeuntes, o peso a arquear-lhe as costas sem descanso e sem paz, a impossibilidade de fuga, Aqui eu não sou feliz, e vou-me pra onde? E toda manhã era sempre o mesmo, o mesmo arranhar nas costas e na alma, as mesmas aventuras desconcertantemente fastidiosas, com frequência a faltar-lhe na mesa café com pão, mas sempre passa caixa, passa carro, passa dor, passa agulhada, passa fome na soleira do barraco, ai, que vontade de chorar. Mas não chorava: vivia sub-sub-repticiamente, sem chamar atenção de ninguém, sem ser nada mais que o operário dos transportes de tantos alimentos de que ninguém dá conta, mas clamava humilde a ajuda do alto, nunca na missa porque domingo é dia de feira, mas Jesus Cristinho nem se incomodava com o pobre, se porque ele rezava em casa, se porque era um pecador ou era negro, não se sabe; soube-se só preterido, esquecido, quase vazio, ora, bastava de ser bicho a mendigar a piedade dos outros ou um pedaço de pão entre os detritos. Já chega. Agora a espera surda e expectorante se faz entre João Gostoso e a lagoa, ampla, de braços abertos, tão preparada para recebê-lo, tão cheirando a merda e a esgoto. Amanhã o jornal sairá com seu nome completo. Chamarão o pobre de alcoólatra. Irão vê-lo passar, de rabecão; alguns estarão no seu enterro, mas poucos terão como ele a tão presente certeza de que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade, traição. E lá vai ele: projeta-se no ar como uma pássaro, ganha o infinito num abraço carinhoso e completo e entrega-se às águas sujas, mórbidas, grossas e impudicas da Lagoa. Não se debate, não grita. Apenas aceita. E pensa do fundo da alma, embora talvez com distintas palavras: “Perdoai-me, transeuntes e leitores do jornal de amanhã, se espirrei-lhes um pouco dessa água e marquei a podridão suja da vida na roupa que acabastes de comprar”.

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* Waldyr Imbroisi é mestrando do Programa de Pós Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz Fora. Interessa-se pelas aproximações de literatura e história e estuda literatura brasileira. Contato do autor: embroyler@gmail.com

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Mundinho branco de talco de vó
por Luci Ponte*

 “Vovó, é a pomba gira?” Foi assim que aprendi a só perguntar algo quando se sabe o mínimo sobre o que se está perguntando e, principalmente, a quem se pergunta. Dia das mães era sempre assim na minha infância: viajávamos de Fortaleza a Sobral de carro para visitar a mãe de meu pai, minha única avó viva. Eram quatro longas horas que, para minha insípida felicidade infantil, passavam rapidinho. Tudo era festa: arrumar a mala, acordar de madrugada, comer paçoca com Coca-Cola no café da manhã em um bar de beira de estrada.
Lembro que da primeira vez que fui arrumar minha mala sozinha, pus as roupas com os cabides, pois não queria que se amassassem. Minha mãe, claro, deu um escândalo e desmanchou minha linda mala de areia. Pois bem, findo o trajeto, chegávamos à casa de minha vó, que quando conheci, já não era muito lúcida, trocava os nomes dos filhos, netos e passava madrugadas em claro, rezando no quintal junto ao muro da vizinha que ela jurava fazer “macumba” noite adentro. Minhas duas tias solteironas que moravam com ela, consequentemente, faziam também uma vigília noturna involuntária. Na verdade, elas vigiavam minha vó que, por vezes, atirava coisas na casa da vizinha: bacias de “água benta”, rosários ou até pedras.
Em geral, chegávamos à casa da vovó na hora do almoço e era um rebuliço só porque vovó sempre cismava que minhas tias não tinham feito comida suficiente e queria ela mesma cozinhar. Esse tumulto era logo controlado porque ela rapidamente encontrava uma outra pessoa para implicar. Entrar na casa da minha vó era sempre uma redescoberta de mim mesma pelos olhos dela. Aquela fortaleza frágil e cheia de certezas falsas fazia meu coração bater mais forte quando dizia “Isso é a Clarinha, Laura?” perguntando a minha mãe. “Tá uma moça”. Aí como de costume, eu pedia a benção, ela me abençoava e, antes que cogitasse seguir a nossa conversa, sua mente já havia escapado novamente para o seu mundinho branco com cheirinho de talco de vó.
Nosso relacionamento era assim, fragmentos de bênçãos em meio a almoços tumultuados de dias das mães. Logo nas primeiras visitas de que me recordo, pensava ser ali uma igreja, pois havia quadros, imagens e terços de todos os tipos e tamanhos espalhados por toda a casa. A sala clara e ventilada com suas cadeiras de balanço de macarrão de cores diversas, os azulejos decorados do piso e aquela cortina colorida arejavam minha mente infantil que olhava para aquelas imagens, tentando prestar a mesma reverência que alguns adultos. Meus olhinhos curiosos percorriam cada uma delas e até reconheciam algumas. Lembro-me claramente do quadro de nossa senhora, ela era linda e sorria para mim como nos meus sonhos. Mas tinha uma imagem naquele lugar que me intrigava. Era uma pomba branca em uma casinha de madeira escura com uma luzinha vermelha acesa sobre sua cabeça.
Não conseguia associar aquela figura a nada que havia estudado no catecismo. Fiquei intrigada por vários anos, mas, dessa vez, decidi ingenuamente perguntar, interrompendo a “conversa dos adultos”: “Aquilo lá no alto é a pomba gira?”. Que eu me lembre, foi a primeira grande oportunidade de ficar calada que eu perdi na vida. Iniciaram-se a partir daí gritos de repreensão de minhas tias, meu pai me dizia para não falar besteira e até minha vó saiu do mundinho branco de talco de vó dela para me dar um esporro, logo seguido de orações confusas: “É o espírito santo, minha filha!” “valei-me nossa senhora”, “chagas abertas” “Jesus amado”. Em seguida, rapidamente, como se nada houvesse acontecido, esqueceram-se de mim e voltaram à conversa de adultos, tumultuada como é de praxe na minha família. Começaram a se perguntar onde eu aprendera isso e de quem era a culpa. Minha vó escapou de novo para seu o mundinho branco de talco de vó e eu fiquei ali sem entender nada. Naquele dia, percebi que algumas das minhas perguntas não cabiam nas respostas pequenas dos adultos.


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* Luci Ponte é comunicóloga, formada pela Universidade Federal do Ceará e professora universitária no Rio de Janeiro. Ela atua como contista, poetisa, dramaturga e atriz. Dentre as peças que escreveu, destaca-se o espetáculo ‘Cidade dos Lázaros’, uma adaptação da obra de Augusto dos Anjos que estreou em Junho de 2012 no Rio de Janeiro. Tem contos, crônicas e poemas em diversas antologias e escreve em seu blog http://minhasemeadura.wordpress.comContato da autora: luciponterj@gmail.com