segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Drummond e Portinari: poesia e pintura

Escrevo este texto premido pelas obrigações da minha função de editor e, ao mesmo tempo, aproveitando o ensejo das comemorações recentes pelo aniversário do poeta Carlos Drummond de Andrade, que já comentamos aqui na Revista e que, inclusive, ensejou igualmente a dica de leitura postada pelo amigo Raphael Reis.

Pensei que para começar uma "coluna" - neste caso seria melhor falar de marcadores - sobre as aproximações da Literatura com outras artes, seria interessante mostrar alguns dos poemas que Drummond escreveu como "legenda" ou "glosa" para desenhos de Portinari criados a partir do Dom Quixote, de Cervantes - ao fim e ao cabo, outra referência literária.

Estes poemas foram editados em um volume fora de comércio junto com os desenhos de Portinari, sendo reunidos depois por Drummond no volume As impurezas do branco, de 1973. Para explicitar o valor dessa aproximação da literatura com a pintura recorro às considerações de Alice Áurea Penteado Martha, que, em um artigo [1] dedicado aos desenhos de Portinari e aos poemas de Drummond diz o seguinte:

"A construção dos poemas revela, certamente entre outras, duas leituras do poeta: do texto de Cervantes (1605) e dos cartões da série Quixote, de Portinari. Sob essa ótica, a elaboração dos poemas pressupõe modos diferenciados de percepção do objeto de poesia pelo eu poético, um verbal e outro não-verbal, dinâmica que produz, no entrelaçamento de visões, um Quixote renovado, para deleite dos leitores de Cervantes, de Portinari e do próprio Drummond."


Dom Quixote de Cócoras com Idéias Delirantes


I / Soneto da loucura
A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
torto endireitando, herói de seda e ferro,

E não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.



VIII/A lã e a pedra                                                            
                                                                                                   Dom Quixote Atacando um Rebanho de Ovelhas
- Olha Alifanfarrão e seus guerreiros!
Olha Brandabarrão e Miaulina!
Micocolembro, vê! mais Timonel!
- Senhor, eu vejo apenas uns carneiros.


A lança em riste avança e fere a lã,
traspassa ovelhas como se varasse
o coração de feros inimigos.
- Chega, senhor, esta peleja é vã.


(Não chega, não, até que a boca sangre
                   e dentes saltem,
                   costelas partam-se
                   e role o corpo,
                   colchão de dores,
                   do herói vencido
                   não por Ali
                   mas a pedradas
                   de enfurecidos                    
                        pastores)

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