sexta-feira, 2 de março de 2012

A Metamorfose, de Franz Kafka: um convite para quebrar o mar gelado que existe dentro de nós

A Metamorfose, de Franz Kafka: um convite para quebrar o mar gelado que existe dentro de nós



Raphael de Oliveira Reis[1]

Há muito tempo que eu queria comentar sobre a obra A Metamorfose, de Franz Kafka, na nossa coluna Dica de Leitura, pois dentre os seus escritos é a obra que eu mais gosto, além de estar entre os cinco livros de minha preferência: 1-Don Quijote de la Mancha; 2- Crime e Castigo; 3- Os Irmãos Karamazov; 4- A Metamorfose; e 5- Dom Casmurro. Ainda, há uma identificação da angústia vivenciada pela personagem principal (Gregor Samsa) frente as situações que lhe aparece, principalmente com a figura do pai.

A Metamorfose é uma das mais pertubadoras narrativas da História da Literatura, a qual faz com que se quebre o mar gelado que existe dentro de nós, e isto, em simplesmente 80 páginas!

Foi escrita em 1912, mas sua publicação aconteceu em 1918. De lá pra cá, despertou interesse dos mais eminentes críticos e autores, tais como: Albert Camus, Deleuze, Guattari, Sartre, Adorno, Borges, etc, que apontam e tentam discurtir sua complexidade.

É comum na estrutura narrativa de Kafka (ver também o livro O Processo), um começo impactante, do clímax, como se a personagem principal tivesse projetado de um longo pesadelo. No caso de A Metamorfose, Gregor Samsa acorda e precebe-se que se transformou em algo diferente, após sonhos intranquilos. E esse algo diferente, nada mais do que uma transformação em um inseto, especificamente em uma barata. No entanto, essa metamorfose se dá de forma natural, num ambiente sem interferência sobrenatural, uma transformação rápida e sem causa exterior – só o incomoda por não poder cumprir com sua rotina de trabalho.



Segundo Merçon (2006, 13)

a novela de Franz Kafka inaugura, cada uma a partir de sua perspectiva particular, duas questões incomuns de ordem antropocultural, moral e até mesmo existencial no seio do ambiente familiar. Do ponto de vista do indivíduo, a questão é: I) como lidar com a inusitada situação de se ver repentinamente metamorfoseado num ‘inseto monstruoso’? do ponto de vista  de vista da coletividade que rodeia esse indivíduo, a questão se resume em: II) lidar com a presença inesperada e inevitável desse estranho ser no espaço íntimo do lar?



Em resumo, o problema central não é a transformação do filho (Gregor), e sim como lidar com algo (fisicamente) diferente e repugnante, embora com “essência” do humano e respectiva ligação familiar, e se virar financeiramente, já que quem era o provedor da família está impedido de trabalhar - já não pode mais sustentar os demais membros (pai, mãe e a irmã).

Gregor era caixeiro-viajante, vendedor de tecidos, único provedor da família, visto que os empreendimentos comerciais do pai não lograram êxito. Devido as exigências de sua profissão acordava cedo (5 horas da manhã), para enfrentar longas viagens de trem, levando-o a um distanciamento de outras práticas do cotidiano (como, por exemplo, lazer, religiosidade, amizades, etc), dedicando-se exclusivamente ao trabalho e ao esforço de que todos pudessem esquecer a desgraça que a família fora cometida, com a falência comercial do pai.

Dedicado à família e ao trabalho, Gregor se torna em um sujeito que deve executar aquilo que lhe é previsto, imposto, invés daquilo que realmente deseja (aquí fica a crítica ao sistema capitalista, o qual padroniza comportamentos e rotiniza o ser humano, o confundido com o objeto, ou melhor, com o objeto da produção).

Os seus familiares (pai, mãe e irmã) ficam passivos perante essa situação, esperando tudo de Gregor, porém após a metamorfose cada um terá que se virar, e de fato se viram, suas “limitações” se rompem.

Com a metamorfose (um desejo inconsciente de Gregor?) a normalidade é quebrada, isto é, fica impedido de cumprir suas tarefas no trabalho e de provedor da família, como já dissemos anteriormente. Assim será cobrado duramente pela família e pelo chefe. Sua transformação em um inseto é uma metáfora que mostra uma quebra com o mundo burocrático e de exploração do trabalho – o inseto não poderia fazer as tarefas mais simples do cotidiano como se levantar da cama.

Com essa situação supracitada, há um repúdio da  família a Gregor, fazendo com que ele se afastasse em seu quarto, totalmente isolado de tudo e de todos, com contato restrito. Mesmo que sua vontade e pensamento fosse de humano, sua comunicação e físico lhe impedia de interagir com os demais membros, fazendo, inclusive, ser rechaçado e até ser agradido, como foi o caso do pai que lhe atirou um pedaço de maça em suas costas, quando de sua tentativa de sair do quarto para a sala, fato este estremamente angustiante e que marcará Gregor até o seu fim.

Outra cena marcante e que define a essência da obra é quando sua irmã Grete diz ao pai:

[…] É o único jeito, pai. O senhor precisa se desfazer da ideia de que aquilo é Gregor. Acreditar nisso, durante muito tempo, tem sido a nossa desgraça. Como pode ser Gregor? Se fosse, há muito teria percebido que seres humanos não podem viver com um bicho como aquele. E teria partido por conta própria. Perderíamos o irmão, mas poderíamos continuar vivendo com o verdadeiro Gregor em nossa memória, para sempre. (Kafka, 2010, 70-71).



E o final dessa narrativa?... Fica o convite ao leitor para quebrar o mar gelado que existe dentro de nós…



Obs.: Kafka quando terminou de escrever esse livro, como de costume, leu o 1º capítulo para alguns amigos, mas a leitura foi recebida com risos…



Sobre Franz Kafka





Nasceu em 3 de julho de 1883, em Praga, República Tcheca, cidade esta que contempla uma vasta e linda arquitetura medieval, e “sombria” por sinal (alguma influência em seus escritos?)

Teve dois irmãos que morreram antes de seu nascimento e 3 irmãs que morreram em campo de concentração, em 1940.

Um dos traços biográficos de Kafka é sua relação tensa com o pai, Herman Kafka, pois se via fracassado diante as espectativas paternas, além de outros traumas de infância como, por exemplo, quando pede ao pai um copo de àgua à noite e o mesmo lhe fecha numa varanda escura.

A pesar da regra básica de que não se deve fazer uma relação direta entre obra literária e dados biográficos, podemos apontar que a construção da A Metamorfose, em alguns elementos, foram retirados das suas experiências pessoais do cotidiano com a figura do pai. No seu livro de memória, Carta ao Pai, Kafka diz que: “eu era para ele um nada dessa espécie”.

Queria fazer filosofia, mas seu pai não deixou porque não dava retorno financeiro. Fez química (lembrando que a Alemanha se tornou a principal potência nesta área – Kafka viveu boa parte de sua vida na Alemanha e suas obras foram escritas em alemão), no entanto abandonou e foi fazer direito, formando-se em 1906 (aproveitou para cursar aulas de literatura, as quais eram sua paixão). Sobre isso diz certa vez: “tudo que não é literatura me aborrece”.

Sua vida amorosa também foi atribulada. Ficou noivo de Felice Bauer 2 vezes em menos de 5 anos, e teve outros relacionamentos malsucedidos.

Sua saúde era muito debilitada, contraiu turbeculose, a qual fez com que fosse internado em vários sanatórios para tratamento. Morreu jovem, aos 40 anos, em 1924.

Uma curiosidade é que suas obras quase ficaram no esquecimento e até mesmo correram o risco de serem destruídas, se não fosse o seu amigo Max Brod. Kafka teria lhe solicitado que queimasse todos os seus escritos, com exceção de O Veredicto, A Metamorfose, Na Colônia Penal, Um Médico da Província e o conto Um Artista de Fome. Contudo, Max Brod não o obedeceu e fez uma grande empreitada para publicar as demais obras (entre elas O Processo e O castelo).

Seu estilo, segundo o crítico literário Edgar carone, “é marcadamente seco, cartorial, com descrição pormenorizadas e tratando de eventos inesperados, quando não impossíveis”, como vimos na nossa dica de leitura acima.

 Referências:



KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Ed. Abril, 2010.

MERÇON, Francisco Elias Simão. Uma Leitura Analística da Novela “A Metamorfose”, de Franz Kafka. Dissertação apresentada ao Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, 2006.



[1] É Mestrando em Educação (PPGE-UFJF), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Social (UFJF) e Graduado em História (UFJF). Atualmente, trabalha como Professor de Suporte Acadêmico no Caed-UFJF, Assessor Político e ministra cursos de formação do leitor e formação política.

4 comentários:

  1. Cara, demais! Vc entendeu mesmo da obra. Tive um contato com Kafka com meus 14 anos em A Metamorfose, que me fez futuramente lê-la novamente. E hoje em dia Franz Kafka é uma das personalidades que me influenciam, além de Jean-Paul Sartre, Anne Frank, Machado de Assis, Bob Dylan, rainha Elizabeth I, Renato Russo e Amy Winehouse.
    Atualmente tenho 19 anos, e entrei pra facul de Filosofia na UFAM (Universidade Federal do Amazonas), porém, gosto muito de Literatuta:"Tudo que não é Literatura e Filosofia me aborrece".
    kkkk
    Me add no Facebook, http://facebook.com/davieswettin

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  2. Caro Davies,

    Fico muito contente que você tenha gostado da postagem (Dica de Leitura) e da Revista. De fato, Kafka é muito bom! Tendo em vista os escritores que vc cita, creio que vc vai gostar de ler Albert Camus (principalmente O Estrangeiro) e Bartleby: o escriturário, de Herman Melville. São excelentes leituras. Você poderá e certamente verá que Literatura na verdade tem relação com muitas coisas e na Filosfia poderá aprofundar determinadas relações, principalmente quando estudar estética. Vou adicioná-lo no face, mas caso não consiga, você pode me adicionar (Don Raphael Reis) Abs

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  3. Este é um dos meus livros favoritos!

    Eu sempre associo as minhas leituras com o meu cotidiano, pode ser que você dê risada de meu singelo comentário, mas aqui vai:

    Quando li a metamorfose pela primeira vez, até me assustei,primeiro achei que tinha comprado um livro com defeito, achei que faltavam páginas,depois voltei a ler a primeira página para compreender o que tinha acontecido!

    Me disseram que é um livro muito "pesado"
    Mas quem me disse isso tem uma vida boa, pacata e feliz.
    Portanto, esta pessoa não poderia compreender Kafka do jeito que eu compreendi.

    Me disseram também, que é um livro chato e sem sentido.
    Mas que me disse isso, é uma pessoa de 34 anos que nunca trabalhou na vida e vive às custas de um pai aposentado em um cantinho protegido, com casa e comida de graça.
    Esta pessoa me lembra os pais e irmã do Gregor, então ele jamais compreenderia a mensagem, acho que ele deve ter ficado com pena dos familiares, não do Gregor.

    Para mim a mensagem que Kafka passa é a de que ninguém é insubstituível!!!
    Por mais que se faça, sempre será pouco.
    Quanto mais damos de nós, mais nos tomam...Se damos a mão ficamos sem o braço.


    Agradeço muito a F. Kafka por ter escrito este livro, pois ele me fez ver coisas que eu não via, a mudar o que estava precisando ser mudado em mim.

    Trabalho para mim, vivo para mim.
    Reparto o que posso.
    Egoísta? Pode ser.
    Mas sou bem mais feliz assim.

    Obrigada, e meus parabéns pela postagem!

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  4. Marcia Regina,

    Obrigado pela participação!

    Abraços e boas leituras!

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