sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O marinheiro que perdeu as graças do mar: novela e canção sobre o desconforto do estar no mundo


"Entretanto, o velho pescador pensava sempre no mar no feminino e como se fosse uma coisa que concedesse ou negasse  grandes favores; mas se o mar praticasse selvagerias ou crueldades era só porque não podia evitá-lo"
(Ernest Hemingway) [1]



Atrasado, eu procurava um tema para riscar a coluna deste mês sem acertar com o que poderia escrever até que o acaso, na verdade quatro ou cinco posts de amigos no Facebook, me lembraram de uma novela do escritor japonês Yukio Mishima: O marinheiro que perdeu as graças do mar. Diziam os posts, que estou traduzindo: "nenhum mar calmo fez de um marinheiro um especialista".

E então me decidi, já que Mishima sempre cruzou meu caminho de modo inesperado, não planejado, através de livros que escolhi ao acaso nas prateleiras das bibliotecas, atraído pelos títulos ou pelas capas. Tudo começou em 2009, creio, quando li a obra já mencionada.

Essa novela, escrita na maturidade do autor, tem uma pequena extensão de páginas (155 no total) e se divide em duas partes: Verão e Inverno. No correr dessas duas estações somos apresentados a um complicado relacionamento familiar: Noboru, jovem de 13 anos, órfão de pai, enfrenta a mudança na vida de sua mãe quando ela decide viver uma relação com o Segundo Piloto Tsukazaki - o marinheiro que dá título à novela. Somado a isso, o adolescente constrói uma imagem superestimada de si mesmo no seio de um grupo secreto.

Mishima tece descrições sutis e singelas (mas, nem por isso, destituídas de força) e vai conduzindo os personagens de maneira sábia e sóbria do pré-clímax ao clímax e vice-versa, dando à narrativa uma movimentação que jamais culmina numa cena afirmativa. Parece que o livro foi escrito sob o signo da negação e os poucos personagens se esbatem nas redes dos desenganos e ilusões humanos. Terra e mar se contrapõem na figura do personagem Tsukazaki. Assim o descreve o autor, nas páginas iniciais: "Embora devesse ser aproximadamente da mesma idade que a mãe de Noboru, seu corpo parecia mais jovem e mais firme do que o de um homem da terra: ele poderia ter sido fundido na matriz do mar"[2].

No entanto, se Ryuji Tsukazaki teve seu corpo forjado pelo mar isso se fez a contrapelo, de modo imperioso, pois, ao contrário dos outros homens, ele fora levado à profissão "por uma antipatia pela terra" e não por gostar do mar. Diz ainda o texto: "Com o tempo, porém, ele se foi tornando indiferente à atração de terras exóticas. Viu-se naquela estranha situação enfrentada por todos os marinheiros: essencialmente, não pertencia à terra, nem ao mar. Um homem que odeia a terra deveria morar sempre na praia. A alienação e as prolongadas viagens marítimas o obrigariam a sonhar outra vez com a terra, atormentando-o com o absurdo de desejar alguma coisa que detesta".

Apesar da novela focalizar principalmente os conflitos do jovem Noboru, parece que ao se envolver com a mãe do rapaz o marinheiro rompeu com sua "estranha situação", criando um motivo para estar em terra talvez por mais tempo do que gostaria e, ao mesmo tempo, se envolve em um ambiente familiar tenso no qual ele nunca consegue romper a condição de ser um estranho. Por tudo isso, pode ser que ao final da leitura estejamos predispostos a aceitar (in)tranquilamente que a glória é amarga e que Tsukazaki é um “traidor”, razão pela qual teria perdido as graças do mar. Ou será que ele é um traído?

Deixo as questões àqueles que se animarem a ler a obra (e sintam-se à vontade para fazer comentários!). Passo agora a falar das tais "outras manifestações" a que o título da coluna faz referência. De modo similar descobri, por acaso, talvez procurando mais informações sobre a própria novela de Mishima, uma música que ostenta o mesmo nome da obra de que vim tratando até aqui: O marinheiro que perdeu as graças do mar. Trata-se da 6ª faixa do LP Nenhum de nós, o primeiro lançado pela banda gaúcha homônima nos idos de 1987.

Não entendo muito de música e espero que tenham isso em conta no momento de acusar minha análise de superficial ou mesmo inadequada ou impertinente, apesar de curta. Eu apenas achei interessante a coincidência do título da canção com o do livro e me parece pouco provável que ela pudesse ser gratuita. Essa música se assenta sobre uma melodia simples que soa repetitiva pela marcação que escutamos, ao longe, feita por um instrumento de percussão. A sensação que eu tenho, ao escutar, é que estamos justamente frente a esse impasse colocado pela novela. Sem mais, deixo com vocês a canção seguida de sua letra. Espero que gostem. Deixo também o site da banda para quem queira conhecer mais: http://www.nenhumdenos.com.br/



O marinheiro que perdeu as graças do mar
Composição: Thedy Corrêa, Sady Homrich, Carlos Stein

As ruas sempre vão ficar no mesmo lugar
Isso fez meus dias sempre iguais, sempre iguais
A imagem na janela é sempre a mesma
Impossível viver dessa maneira
Na Terra,
Esperando as lágrimas correrem de novo
Na Terra
Esperando
As lágrimas
As ondas nunca vão ficar no mesmo lugar
Tudo que eu posso ouvir é minha própria voz
O mar refugia horizontes vazios
Nele passaria a vida inteira
Esperando
As luzes do porto
Desejando o que mais odeio

Notas:

[1] Hemingway, Ernest. O velho e o mar. Trad. de Fernando de Castro Ferro. 46ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000)

[2] Todos os trechos da novela de Yukio Mishima aqui citados foram lidos em: Mishima, Yukio. O marinheiro que perdeu as graças do mar. Trad. de Waltensir Dutra. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

Pós-escritos:

Peço desculpas aos leitores pelo atraso e relativa inconstância da minha "coluna". Em geral as firulas vem no início do texto, mas como desconfio que isso já pode estar cansativo trouxe para o final. O ideal seria poder excluí-las. Quem sabe um dia?

Aos agraciados com a publicação de poemas no Edital 04/2012, informo que os livros e certificados de Menção Honrosa serão enviados até o dia 15/12/2012. Anteriormente eu informei que mandaria até hoje, 30 de novembro, mas só ontem a transportadora entregou os exemplares e prefiro não fazer as coisas correndo.

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