domingo, 24 de fevereiro de 2013

Borges: a leitura no limite e o olhar sugestionado

A coluna deste mês surge por influência da indicação de leitura feita aqui nesta mesma Revista. Tratarei de esboçar algumas linhas a respeito do modo como Borges leva a leitura, tal qual a conhecemos, ao limite. E pretendo ainda mostrar como, neste processo, o autor consegue sugestionar nosso olhar, fazendo com que nós, leitores, vejamos em certas imagens/situações a realização do seu universo literário tão particular. Nenhuma das ideias é nova ou pertence exclusivamente à minha pessoa. Neste sentido, chamo especial atenção para uma conferência (em espanhol) da Dra. Alicia Poderti, intitulada "Borges en su laberinto", que nossos leitores poderão encontrar em: http://bit.ly/YqeYir

A leitura no limite

Em mais de uma ocasião Borges outorgou papel proeminente à leitura. No que tange a declarações suas repetidas à exaustão, há duas que me interessa destacar: [1] o autor disse considerar que o Paraíso seria uma espécie de biblioteca e [2] ele aludiu que as páginas lidas por um escritor seriam mais louváveis que aquelas que esse mesmo escritor já produzira. 

Além disso, o tema da leitura reponta em mais de uma obra borgeana. Para o escritor, o ato de ler, assim como a literatura, seria um ato de re-escrita e até mesmo de criação, liberado, portanto, de seguir esquemas e de prender-se exclusivamente àquilo "que o autor quis dizer". O conto Pierre Menard, autor do Quixote (presente em Ficções, de 1944) é representativo dessa particular visão do fazer literário. 

Constituído por um “arremedo” de ensaio no qual se comentam as obras que teriam sido deixadas por Pierre Menard, o texto nos apresenta a mais audaciosa das empresas deste autor fictício: a re-escrita do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Mas tal obra é composta com as mesmas palavras de Cervantes. A diferença está no significado que tais palavras tinham no século XVII quando a obra foi publicada pela primeira vez e o significado que elas possuíam no século XX. Para o ensaísta que escreve o conto, a intenção de Menard era louvável, pois este queria “continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências de Pierre Menard”. (BORGES, 1972, p. 52). O destaque aqui não é para o autor, e sim para o leitor, aquela pessoa capaz de ampliar uma obra para além do limite de suas páginas, acrescentando significados às palavras a partir do seu momento histórico e, mais que isso, a partir de suas próprias experiências.


Se o primeiro exemplo que dei aponta para uma concepção "libertária" da leitura, os exemplos que se seguirão apontam para uma "premonição" borgeana: a leitura que ultrapassa os limites da materialidade e se avizinha do que hoje praticamos como sujeitos inseridos em uma "sociedade da informação". 

No conto O livro de areia, apresentado pela revista como dica de leitura, somos confrontados com um livro infinito, sem começo nem fim, de contornos deslizantes como a areia. Em consonância com o ponto de vista apresentado acima, podemos supor que todo livro pode ser um livro de areia, pois cada leitor (e aí voltamos ao tema da leitura) fará um percurso próprio que não se limita ao número de páginas, um percurso que ultrapassa a materialidade da obra que tem em mãos. 

Outros dois exemplos, mais contundentes: no conto A biblioteca de Babel, também presente no já mencionado Ficções, o universo é apresentado como uma biblioteca infinita: 

"O universo (que outros chamam a Biblioteca) constitui-se de um número indefinido, e quiçá infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por varandas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os pisos inferiores e superiores: interminavelmente" (Borges, 1972, p. 84). 

Nesta biblioteca infinita, estão contidos todos os livros possíveis de serem escritos, sem que haja dois volumes idênticos e é impossível o conhecimento de todos eles no tempo curto da existência de um homem. 

Este conto se encerra com uma nota de rodapé que "simplifica" a questão e reduz a utilidade da vasta Biblioteca, antecipando a imagem trabalhada pelo autor no supracitado O livro de areia. Transcrevo: 

Letizia Álvarez de Toledo salientou que a vasta Biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um só volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, composto de um número infinito de folhas infinitamente delgadas. (Cavalieri, em princípios do século XVII, disse que todo corpo sólido é justaposição de um número infinito de planos.) O manuseio desse vade mecum sedoso não seria cômodo: cada folha aparente se desdobraria em outras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso. (Borges, 1972, p. 94) (grifo meu)

No que diz respeito à materialidade do objeto livro, nós sabemos que atualmente os textos já podem prescindir do suporte material e, habitando o espaço virtual, se deixam interceptar por links que nos direcionam sempre a novas e diferentes textualidades, como essas folhas aparentes que se desdobram em novas folhas sem reverso. Na rede, cada texto é sempre outro e sempre novo, sem começo e sem fim. Tenho a impressão de que relacionar a leitura dispersa da internet com o universo literário borgeano é um indício de como nosso olhar para o mundo foi sugestionado pela força da escrita do autor. Antes de passar para a próxima seção, deixo outra indicação de leitura, que irá esmiuçar melhor a relação de Borges com a internet e que fará isso com uma competência que me falta. Trata-se do artigo "A Biblioteca de Babel: uma metáfora para a sociedade da informação", de Johnny Virgil, disponível para leitura em: http://bit.ly/Xu6vdL

O olhar sugestionado

Em Borges y yo, texto presente no volume El hacedor, de 1960, e que é, diga-se de passagem, um falso convite à intimidade, o narrador aparente (o homem Borges, "divorciado" de sua persona de escritor) (?), assim se refere a um incômodo, causado pela convivência com sua outra parte:

Hace años yo traté de librarme de él y pasé de las mitologías del arrabal a los juegos con el tiempo y con lo infinito, pero esos juegos son de Borges ahora y tendré que idear otras cosas. Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del olvido, o del otro. (BORGES, 1997, p. 63) (grifo meu)
O que me chama a atenção nesta passagem é a alegação de que esses jogos pertencem a Borges agora. Ao transpor seus interesses "pessoais" para a literatura, colocando-os em letra de forma, o escritor estaria "roubando de si mesmo", ainda que no final do processo, pela própria repercussão de seus escritos, os jogos com o tempo e o infinito, assim como o gosto por mapas, relógios de areia e etimologias, estejam inevitavelmente associados ao seu nome. O texto já mencionado termina com uma frase que dá a justa medida da indissociação: "No sé cuál de los dos escribe esta página" (idem, p. 63).

Acredito que a força de atração que o nome de Borges exerce sobre determinados elementos de seu universo literário, fazendo com eles gravitem ao seu redor como os planetas em torno do sol, combinada com o caráter imagético de suas descrições (que pode ser comprovado por uma releitura do trecho aqui citado de A biblioteca de Babel) nos faz associar certas imagens e realidades ao seu universo literário tão particular. 

Aliás, o leitor mais atento deve ter percebido que este texto veio sendo acompanhado por algumas imagens que, à semelhança do texto borgeano, borram os limites entre o real e o fantástico. São montagens fotográficas feitas por Erik Johansson. É possível que alguns não concordem comigo, mas, desde o dia em que um amigo argentino compartilhou uma dessas imagens no Facebook e me marcou em sua publicação, não pude deixar de associar o universo visual desse artista alemão às criações de Borges, autor que, como proponho, colocou em sua literatura força suficiente para sugestionar (ou talvez subordinar) o nosso olhar, levando-nos a sempre enxergar algo de seu ao nos depararmos com imagens como estas ou com avanços tecnológicos como a internet.


Para quem tiver interesse de conhecer melhor a produção de Erik Johansson, sugiro visitar sua página pessoal: http://erikjohanssonphoto.com/. A divulgação da página responde ainda à indicação de autoria que é a condição colocada para o livre compartilhamento dessas imagens.


Obras de Borges citadas neste texto:

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Abril Cultural, 1972

BORGES, Jorge Luis. El hacedor. Buenos Aires: Emecé, 1997


Pós-escrito: 

[1] Como qualquer outro texto publicado na Revista Encontro Literário, este também se presta a ser comentado, elogiado e criticado. Sobretudo criticado, porque não sei se fui suficientemente claro na segunda parte desta coluna, quando falo do "olhar sugestionado", que pode não passar de uma má expressão escolhida por mim para descrever o fenômeno a que faço referência.

[2] Para aqueles que sempre querem saber como o mágico tira o coelho da cartola (e tirar um pouco do encanto do espetáculo), deixo o link para um vídeo (em inglês) em que Erik Johansson explica seu processo de criação: http://youtu.be/mc0vhSseGk4

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