quarta-feira, 22 de junho de 2011

Conto: O Príncipe, de Raphael Reis

O Príncipe[1]

Conta-se que no país de Argon havia um príncipe de nome Garcia Falcón, o qual fora instruído pelos pressupostos de O Príncipe.
Garcia Falcón, o venerável – assim era chamado pelos seus súditos – gostava tanto da obra supracitada que mandou fazer réplicas de alguns pressupostos contidos no livro e as fixou nos cômodos de seu castelo, em diversas traduções, entre elas, latina, italiana e grega.
Levava tão a sério que sempre acordava com a máxima de como faria para preservar o equilíbrio entre ser amado e temido.
Dentre as singularidades de seu governo, aponto as seguintes: duas vezes ao ano fazia grandes banquetes que satisfaziam tanto os nobres como a plebe. Ao realizar obras públicas para a melhoria da cidade, fazia aos poucos para que os súditos as degustassem e as venerassem por mais tempo.
Sabia que essa atitude nem sempre era suficiente para garantir sua força, a obediência, o poder, a manutenção da ordem. Então, lembrava-se sempre de que o desejável era ser amado e temido ao mesmo tempo, mas como isso era improvável, deveria escolher ser temido.
O amor é algo efêmero, como já dizia Machiavelli, e pode mudar conforme as circunstâncias. O temor não; ele se torna desejável a um príncipe devido ao medo dos súditos frente às represálias e castigos.
 Para atingir ao intento de ser temido, vez por outra mandava seus soldados realizarem castigos e execuções públicas. Isto, além de ter a intenção de causar temor, era uma forma de ser amado; as pessoas se divertiam com tais espetáculos.
No ano de 1755, o rei de Argon foi cometido de uma doença rara, sem diagnóstico. Os seus sintomas eram visíveis: a pessoa emagrecia, perdia as forças e em questão de dias vinha a falecer.
As alternativas para cura de tal enfermidade eram três, a saber: 1º) ir ao encontro do Papa e lhe pedir que fosse curado; 2º) pedir a cura a um rei taumaturgo; 3º) ou pedir uma feiticeira.
A primeira opção foi logo descartada, pois a submissão ao Papa seria um ato explícito de que a natureza e poder eclesiástico eram maiores do que o político exercido pelo rei. A segunda opção era a mais inviável entre todas. Ir ao encontro de um rei taumaturgo era dizer que este era divino, detinha mais poder, e que ele, como rei, era um fraco. A terceira opção foi a mais plausível, logrou Garcia Falcón, de um ponto de vista prático, embora pudesse lhe causar uma acusação de participação com bruxaria ou de ser um herege, o que o faria perder a legitimidade do poder político e a respectiva exclusão religiosa, traduzida também por uma exclusão social.
Mas assim foi feito. Pediu a um funcionário de confiança que lhe trouxesse a feiticeira mais famosa de seu reino. Ao chegar ao quarto do rei, a feiticeira Diana lhe disse:
– As minhas mãos te curarão e deverás ser grato por isso. Do contrário, aquilo que mais prezas se voltará contra ti.
Após alguns rituais, passando as mãos por todo o corpo do rei, junto a galhos e folhas, proferiu algumas frases em idioma desconhecido e terminou a sessão. Imediatamente, o rei pediu ao funcionário que a retirasse do castelo com a maior discrição possível.
De fato, Falcón estava reabilitado da doença em questão de dias. Porém, ocorreu algo desagradável: a bruxa Diana espalhou que havia curado o rei com práticas de feitiçaria. Tal boato repercutiu tanto que o rei teve que tomar as devidas providências.
Mandou que a executassem em praça pública, apedrejada por difamação e consequente crime de lesa-majestade.
Da sacada do castelo, no momento da execução, os olhos da bruxa encontram os do rei. Esse olhar fez com que o rei se lembrasse da frase da feiticeira de quando ela estava a curá-lo.
Aquela fala não lhe saía da mente. Contudo, tinha algo de mais relevante a se preocupar: seu reino estava prestes a entrar numa importante guerra.
O reino de Nargan era o mais famoso e temido. Ressalto duas informações importantes: o rei de Nargan era conduzido pelo rei Fernando, o maior. Este era amigo de infância de Falcón e os dois reinos tinham um pacto de não invasão e proteção mútua.
Entretanto, a ambição de Falcón em ser o maior e o mais importante de todos os reis levou-o a fazer alianças com outros reis e, por conseguinte, a invadir, sorrateiramente, o reino do amigo.
A vitória foi relativamente fácil, pois conseguiu reunir um exército sete vezes maior que o de Nargan. Apesar da resistência e habilidade dos soldados de Nargan, foram derrotados em três dias.
Ao voltar para seu reino, uma das primeiras ações de Garcia foi reler O Príncipe. Naquela noite, ao passar as folhas depois de molhar as pontas dos dedos, indicador e polegar, releu toda a obra e dormiu satisfeito.
Sua felicidade era óbvia: era o príncipe de Machiavelli, seu reino estava mais que consolidado e unido, seus súditos o amavam e o temiam, a fortuna sempre lhe favorecia, tinha muito poder e a ordem estava estabelecida. Conclusão: era um príncipe que agia com virtù.
No dia seguinte, soldados reais trouxeram perante Garcia Falcón um prisioneiro. Era um homem com seus quarenta anos, chamado Álvaro del Valle, o boticário.
– Alteza. Este senhor estava em praça pública pronunciando impropérios e criticando Vossa Alteza, além de incitar as pessoas a se rebelarem contra o poder monárquico. Podemos executá-lo?
O rei tomou em mãos o cetro, olhou para aquele homem, totalmente vulnerável e disse:
– Ser desprezível! Como ousas questionar minha autoridade e ações. Para que tu digas aos outros de pensamento igual que Sua Majestade é piedosa, não te mandarei para forca, como gostaria. Soldados, retirem-lhe tudo, absolutamente tudo!
A execução foi realizada como o rei mandou. Os soldados destruíram tudo que havia na casa daquele homem. Mataram seus animais e destruíram sua butique.
Era época de festa no reino de Argon. Afinal, era a data de aniversário de Garcia Falcón e todos deveriam prestar suas homenagens ao rei. Grande festa foi dada com suntuosidade, como jamais fora visto em outro tempo ou localidade.
Um dos presentes que mais agradou ao rei foi um livro de capa de couro, manuscrito em italiano toscano, mas com um detalhe: não havia identificação de quem lho enviou. Talvez o cartão tenha se perdido no meio da viagem.
Naquela noite, entregou-se deleitosamente à leitura daquele manuscrito. Seguindo o hábito, molhou as pontas dos dedos, virando as folhas até chegar à última.
Detalhe curioso: o livro possuía, ao final, mais cinco folhas com alguns trechos em destaque, a saber:
1º) A leitura correta sobre O Príncipe requer certa astúcia.
2º) Para bem conhecer a natureza dos povos, é necessário ser príncipe. E para bem conhecer a dos príncipes, é necessário pertencer ao povo.
3º) Por que Lorenzo de Médici renegou qualquer importância às cartas de Machiavelli?
4º) Machiavelli era republicano e não monarquista como pensa o senso comum.
Estupidez – pensou o rei.
- Machiavelli foi destituído de sua posição de funcionário da República de Florença. Aquelas cartas, além de ensinar aos príncipes como verdadeiramente reinar, eram uma forma de mostrar sua insatisfação com os ideais republicanos de Florença, completou o rei, pensando alto.
5º) Os homens esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio.
O rei começou a sentir tonturas, suava frio, dificuldades para respirar. Lembrou-se da fala da feiticeira, do homem a quem mandou retirar tudo – um grande erro para um príncipe à Machiavelli. Observou que sua língua estava dormente – o veneno tomou-lhe a corrente sanguínea.
Ao chão, os dois príncipes.
07/02/2010
Para Beatriz de Basto Teixeira


Este conto faz parte do Livro "Contos que Machado de Assis e Jorge Luis Borges Elogiaram", de Raphael Reis, a ser lançado no segundo semestre de 2011, pela Editora Scortecci.
Raphael Reis é especialista em Políticas Públias e Graduado em História, ambas as formações pela UFJF. É membro do Grupo Prazer da Leitura e Editor da Revista Encontro Literário.






[1] Este conto recebeu Menção Honrosa da Academia de Letras, Artes e Músicas de Ituiutaba.

2 comentários:

  1. Muito bom o seu conto, retrata de forma clara e poética a essência de Maquiavel em sua principal obra, ao contrário do que é disseminado no senso comum, sobretudo pela nossa mídia jornalística.É um convite a uma leitura mais criteriosa desta obra que tanto influenciou e influencia a política ocidental.

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  2. Muito bom meu caro, com certeza um grande talento a serviço da leitura e da literatura! Continue nos brindando com seus contos!

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