sábado, 30 de junho de 2012

Conto selecionado no Edital 03 - 2012, categoria Adulta: "Abandono"

Abandono 
por Gilson Morais*


Pedro Fortunato chegou do trabalho e descobriu que sua casa o abandonara.


Ficou uns momentos parado na calçada observando o terreno vazio diante de si, totalmente vazio não fossem algumas telhas derrubadas no calor da fuga e sua mala deixada a um canto de muro. Caminhou até lá. Dentro, suas roupas e alguns objetos pessoais. Nenhum bilhete, nenhuma notícia, só o puro abandono. 


Arrastou a mala até a calçada do vizinho e sentou sob a castanheira, que não quis comentar o fato. Teve que se contentar com o silêncio da noite e a solidão que o envolvia como um manto frio. 


Ele era um vendedor. Vendia arruelas. Era muito diligente com seu trabalho: elaborava tabelas, agendava treinamentos, estudava os catálogos, vivia discursando a quem não quisesse ouvir sobre a importância delas para o progresso. Sabia tudo sobre arruelas. Na juventude ele era uma mente revolucionária, inquieta. Estava sempre à frente nas reivindicações da turma da escola, do bairro, de qualquer associação com que simpatizasse. De decepção em decepção caiu no mundo incrível das arruelas. Casou e fez família.


Pedro Fortunato tinha três filhos. O mais velho fora morar num país distante e nunca mandava notícias. O mais novo optou por se mudar para uma cidade próxima: precisava estar ao alcance de um depósito bancário. O do meio arranjara um casamento como desculpa para sair de casa e trabalhava muito para satisfazer os caprichos da esposa. A este não sobrava tempo para amenidades familiares. A mãe dos três, vendo o lar vazio, não mais enxergou sentido em morar com um homem seco e sem poesia. Mandou uma mensagem à irmã ("...saí ao mundo, fui respirar...") e não se soube mais dela. Pedro Fortunato continuou na casa, mas agora ela também partira. 


Cabeceou toda a madrugada, sentado no meio-fio. Com os primeiros raios de sol da manhã levantou e viu que estava descalço. Ainda flagrou seus sapatos e sua mala dobrando a esquina, apressados. Não ia rebaixar-se a persegui-los. Que fossem. 


Caminhou o dia todo, de mãos dadas com a chuva que caía. Não encontrou rostos conhecidos, nem abrigo, nem a fome. Todo o propósito o deixara e, com a volta da noite, a vida resolveu ir embora também. Só a chuva permaneceu ao lado do seu corpo frio. Ninguém sabe quanto tempo levou, mas, por fim, o enterraram num buraco já superlotado no cemitério. 


Seu Aristides, o coveiro, registrou reclamação três vezes. Não quer mais reenterrar aquele cadáver deplorável, a teimar, toda semana, em sair de sua cova. Um cadáver que os vermes não roem e os animais da noite evitam. Seu Aristides só sabe que aquilo o assombra e já avisou: se ninguém tomar providências vai deixar aquela carcaça lá, no chão, à vista de todos, abandonada.

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Gilson de Oliveira Morais Junior é paraibano. Empresário, graduado em Letras e leitor ávido, ele é integrante do grupo Oficina de Escritores, na Internet, desde 2010, onde vem trabalhando sua escrita, caracterizada pelos elementos fantásticos inseridos nos temas cotidianos. Contato do autor: gilson_moraispb@yahoo.com.br

2 comentários:

  1. Parabéns ao Gilson pela beleza de conto. Perfeito, gostoso de ler e verdadeiramente merecedor de qualquer prêmio que venha a receber.

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  2. Perfeitamente lindo e triste! Parabéns!!!!

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