Becos
por Teresa Margarida Pedrosa Cardoso *
Um homem caminhava pelo deserto há longos dias. Seguia de joelhos,
parecendo empenhado como um pagador de promessas. Seguia concentrado
na paisagem que lhe surgia à frente. Imutável. Reveladora de uma
eternidade sufocadora. Seguia indiferente ao que deixava para trás,
ao que o ladeava. E, porque deveria ser diferente? Afinal, o homem
era um mero peão num cenário de quase-vácuo, pontuado por
ornamentos supérfluos que se repetiam e reciclavam. Era um peão
manipulado por um desejo forte de salvamento instantâneo, o que quer
que fosse que isso significasse: vida ou morte. O homem aspirava
somente a uma resolução milagrosa que o libertasse da sensação de
encurralamento. Porque, apesar de se estender à sua frente uma
infindável imensidão, havia muito que perdera a bússola. Havia
muito que suspeitava andar em círculo; havia muito que suspeitava
ter pisado vezes incontáveis as mesmas areias. Estava desorientado,
e a única força que o mantinha em movimento era uma crença. A
crença de que desistir de caminhar só o afastaria da concretização
do milagre que o haveria de libertar.
Entretanto, a sua pele travava batalhas épicas contra insectos
famintos e furiosos. Em breve, a aridez do clima faria surgir
espinhos à sua superfície e, acabaria por mimetizar um cacto. E, se
não encontrasse a saída, o homem e o ambiente não tardariam a
fundir e a confundir-se. Porque o deserto parecia um predador, movido
por um ávido desejo de engolir o homem. Era aquele silêncio que
ensurdecia; era aquele calor que inabilitava o raciocínio astuto;
era aquele ar denso que sufocava; era aquele vento que, por vezes, o
esbofeteava com punhados de areia.
Em momentos de cansaço, lágrimas misturavam-se com sangue e medo
com raiva. A sua mente ameaçava tornar-se numa arca caótica, onde a
fantasia tomaria o lugar da realidade, a ânsia de uma solução
imediata e a força para a procurar seriam substituídas por cobardia
e fraqueza. Deixar-se abandonar, secar, morder era uma ideia
recorrente, e demasiado apetecível em ensejos de desgraça.
Perseverar tornou-se um gradiente crescente de flagelos. Mexer-se
tornou-se uma odisseia amarga. Pensar tornou-se uma tortura. Via a
vida segmentada como se a visionasse numa película de filme mudo,
entre demorados piscar-de-olhos, e projectada sobre um fundo
negro e enfermo. Naquelas ocasiões, parecia-lhe que o passado e o
presente se enquadravam mutuamente. Num ápice, chegou ao topo da
escala da auto-comiseração e ergueu a bandeira do desespero. E,
veio-lhe do fundo do seu coração esquartejado, uma necessidade
imperiosa de desembaraçar o mundo de si, de expurgá-lo de qualquer
prova da sua existência. Se ao menos o seu coração fosse uma
sombra, um vulto diáfano…
Até que…se deparou com um oásis. Foi uma réstia de água, foi a
sombra fragmentada de uma palmeira mas, foi sobretudo o consolo da
novidade na paisagem que lhe deu um novo impulso, que lhe ressuscitou
a esperança, quase morta, num destino sensato e profícuo. E, foi
então que decidiu jamais voltar a duvidar, a hesitar, a congeminar
uma desistência. Ao contrário, restabeleceu-se e reergueu o seu
corpo. Gritos oriundos das profundezas do seu âmago retaliaram a
morte outrora anunciada. O calor da areia quente sob os pés
incitou-o a correr, a saltar, a voar. Uma antiga bênção celta
escapou-lhe por entre os lábios: «Que a estrada se erga para te
encontrar, que o vento esteja sempre nas tuas costas, que o sol
brilhe quente na tua face, que a chuva caia suavemente no teu campo,
e até te encontrar de novo, que Deus te guarde na palma da Sua mão.»
E, um dia, depois de muitos dias iguais, recheados da mesma areia, do
vento derrubador, de insectos sanguinários e de securas letais,
encontrou a porta do mundo. Foi uma descoberta tão inesperada, que o
homem se sentiu inábil e ignóbil. Sentiu-se frágil e hesitante. E,
se a porta escondesse pesadelos maiores? Não, não! «Jamais voltar
a duvidar, a hesitar, a congeminar uma desistência.» foram as
palavras que instantaneamente assaltaram o seu cérebro confuso,
tornando explícito o seu dever. Abriu a porta. Maravilhado com o
cenário que se espraiava diante dos seus olhos, deu um passo. E,
porque não se apercebeu do buraco profundo que o separava do cenário
encantatório que o cegava, caiu.
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* Teresa Margarida Pedrosa Cardoso tem 33 anos. Nasceu e vive em Portugal. Licenciada em Biologia e doutora em Bioquímica, trabalha como professora universitária. Apesar de possuir um conjunto de textos em poesia e prosa escritos, publica somente trabalhos de caráter científico. Antes da participação na Revista Encontro Literário, apenas em uma ocasião havia publicado um dos seus trabalhos de índole literária. Isto aconteceu no âmbito de uma ação promovida por um agente cultural com o objetivo de aproximar a poesia dos habitantes da sua cidade.
Puxa, gostei muito. Parabéns. Como ninguém comenta, fica-se até com medo de comentar primeiro mas, 'Não, não! «Jamais voltar a duvidar, a hesitar, a congeminar uma desistência.»'. Arrisco.
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