sábado, 7 de janeiro de 2012

A Dama do Cachorrinho: algumas considerações sobre a construção narrativa de Anton Pavlovitch Tchekhov

Mais um ano inicia-se, e como de costume, desejamos a todos um excelente 2012, com muita paz e cheio de coisas boas. E que seja um ano também no qual o amor pela sabedoria possa ser insaciável, mas uma sabedoria da prática do conhecimento, da vontade de compartilhar com o outro, de aprender. Ainda, desejamos também que haja um olhar mais carinhoso com as produções culturais (literatura, teatro, cinema, música, artes plásticas, etc) por parte daqueles que estão à frente das políticas públicas e da sociedade em geral – e é neste sentido que a Revista Encontro Literário contribui, fomentando a produção literária e o mais importante, o seu acesso gratuito, bem como a democratização de informações referentes à literatura, cultura em geral e acadêmica.
E para começarmos o ano com o “pé direito” nada melhor do que uma boa leitura, com um clássico do gênero conto. Portanto, a seção Dica de Leitura, do mês de janeiro, começa nada mais nada menos com o conto A Dama do Cachorrinho, do russo Anton Tchekhov.
É interessante notar que o século XIX (na Rússia) é um momento do brilhantismo da literatura universal, mesmo vivenciando um contexto de relações servis e do império tsarista, visto pelo Ocidente como atraso, visto que este já estava em sua 2ª Revolução Industrial e já havia passado pela ideias iluministas da Revolução Francesa e da Independência Norte Americana.
No contexto russo do século XIX tivemos escritores, tais como: Aleksandr Púchkin (1799-1837) a Mikhail Lérmontov (1814-1841), passando por Nikolai Gógol (1809-1852) e Ivan Turguêniev (1818-1883), até chegar a Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Liev Tolstói (1828-1910) e Anton Tchekhov (1860-1904). Afirmo, mesmo correndo o risco, de que em nenhum outro contexto temporal ou espacial, tivemos tantos autores de extrema qualidade e importância para a literatura, reunidos num mesmo período e espaço.
E neste time de galácticos, Anton Tchekhov ficou consagrado como o mais ousado da tradição clássica e um precursor das formas e da linguagem contemporânea. Ficou conhecido como o mestre das narrativas curtas (na época era de costume os romances, e de grande tamanho, por exemplo, Guerra e Paz, de Tolstói e Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski), recriando em sua escrita o microcosmo literário que abrange o infinito e a imensidão do ser humano e do mundo.

Segundo Elena Vássina (2010):
ao mesmo tempo, Tchekhov é um grande renovador da arte dramática, criador de um novo paradigma estético do drama contemporâneo. Fora das obras de ficção, este autor russo deixou-nos uma valiosa herança dos escritos documentais: ensaios jornalísticos, cartas, diários e cadernos de anotações. Por isso, não é de estranhar que as obras completas do escritor, cujo credo literário era ‘a brevidade é irmã do talento’, incluem 30 volumes.

Dentre as peculiaridades de sua escrita, podemos destacar: ridicularização do que se considera normal, ou seja, daquele senso comum que rege a vida corriqueira; cortar cada palavra supérflua, cada frase escassa, para atingir um alto grau de condensação; e mergulhar na vida cotidiana, cheia de fatos miúdos para captar através deles o essencial e o eterno da existência humana. Assim, Tchekhov dizia que o seu objetivo era “matar dois pássaros com um tiro: descrever a vida de modo veraz e mostrar o quanto essa vida se desvia da norma. Norma desconhecida por mim, como é desconhecida por todos nós”.
Outro aspecto importante é que Anton Tchekhov não se achava pregador da verdade (talvez, por isso suas críticas a Tolstói e Fiódor Dostoiévski), pois nunca sugere soluções para os problemas tão difíceis da vida, logo suas obras não têm desfecho, pois terminam em reticências, como o fluxo natural da vida. Acreditava na liberdade da interpretação de texto, que seria um privilégio de cada leitor, participante ativo no ato da criação literária, chegando a dizer que “confio inteiramente no leitor, supondo que ele próprio vai acrescentar os elementos subjetivos que faltam ao conto”. E é exatamente este elemento que irá universalizar e imortalizar o seu mais conhecido e admirado conto, A Dama do Cachorrinho.

A Dama do Cachorrinho é um conto publicado primeiramente, em dezembro de 1899, na revista russa Russkaya Mysl (Pensamento Russo). Desde então, o conto vem sendo relançado em inúmeras coletâneas, tornando-se um dos trabalhos mais populares do autor.
Conta a história de Dmítri Dmítrich Gúrov, casado e com três filhos, entediado com a vida matrimonial e há algum tempo passara a trair sua esposa. Mantinha aventuras passageiras com suas amantes e, amargurado com suas fúteis experiências amorosas, passa a referir-se às mulheres com desprezo.
Dmítri morava em Moscou e estava em Ialta, já há duas semanas, para descansar. Lá comentavam sobre uma dama que aparecera à beira - mar e andava em companhia de um cachorrinho, como não sabiam seu nome a chamavam simplesmente de A dama do cachorrinho. Interessado, Dimitri à vê em diversos lugares a passear com seu lulu branco, até que certa noite ambos jantam no mesmo local e ele tenta aproximação, atraindo o cachorrinho.
Ana Sierguéievna, a dama do cachorrinho, era natural de Petersburgo e morava na cidade de S., com seu marido. Também sentia-se infeliz no casamento e como estava sozinha em Ialta, conversa com o estranho para diminuir sua solidão. Os dois passaram a se encontrar todos os dias e Dmítri sente-se muito atraído por aquela mulher, até que o marido manda uma carta a Ana, pedindo que ela retorne, pois ele está doente. Eles se despedem com a promessa de não mais se verem.
Dmítri retorna a Moscou e não consegue esquecer Ana. Mudado já não trata as mulheres com arrogância e percebe que está apaixonado. “Será que se apaixonara pela primeira vez na vida? Gúrov não o sabe, nem o próprio Tchekhov, e, portanto, tampouco nós o sabemos”. (BLOOM, 1997, 36)
Resolve então ir para a Cidade de S., para reencontrar Ana. Descobre onde ela mora, porém não à procura esperando um encontro casual. Vai à estreia de uma peça teatral e encontra Ana que, perturbada com a presença do amante, revela que também não o esquecera, mas pede que ele vá embora, temendo o flagrante do marido.
Ana promete ir a Moscou e cumpre com a palavra. Passa a viajar periodicamente para encontrar o amante. Amam-se com sentimento de culpa, mas se perdoam ao perceber que aquele amor os transformara. Juntos conversam sobre o desconforto do amor às escondidas, pensam começar uma vida nova, mas não sabem como recomeçar.
E assim termina o conto, numa de suas mais famosas reticências. Nos dizeres do crítico literário norte-americano, Harold Bloom (1997, 36),
E isso é tudo o que Tchekhov nos oferece; porém, o conto reverbera, durante muito tempo, depois dessa conclusão que nada conclui. Gurov e Ana Siergueievna, claro está, transformam-se ao longo do relato, mas a mudança não é, necessariamente, para melhor. Nada que um possa fazer pelo outro trará qualquer redenção; o que, então, resgata a história dos dois de uma rotina entediante? Até que ponto a história de Gurov e Ana difere de outras tantas malfadadas histórias de adultério?

Na perspectiva de Elaine Vássina (2010), o final deste conto é o final de um dos contos mais líricos e sutis de Tchekhov, pois ambos as personagens principais, casados e infelizes em seus casamentos, “tinham a impressão de que mais um pouco encontrariam a solução e, então, começariam uma vida nova e bela; todavia, em seguida, tornava-se evidente para ambos que o fim estava distante e que o mais difícil e complexo apenas se iniciava”. Dessa forma, fica o efeito buscado por Tchekhov, ao encerrar uma narrativa: a vida continua e a realidade é inesgotável.



Referências Bibliográficas:

Anton Tchekhov. A Dama do Cachorinho. Porto Alegre: LPM, 2009.

_____________. O Assassinato e outras Histórias. São Paulo. Abril, 2010, p. 231-244.

BLOOM, Harold. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

VÁSSINA, Elaine. Anton Pavlovitch Tchekhov. Revista Cult. Edição de nº 132, dezembro de 2010.

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