segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Sobre estilo e estilistas: quando a Literatura nos ajuda a pensar a indústria da moda

Manoel Messias da Fonseca
Ailton Magela de Assis Augusto [1]



[2]
Se buscarmos a origem etimológica da palavra estilo, veremos que a mesma vem do grego stylus: pequena haste de osso, metal, etc., com uma extremidade pontiaguda e a outra espatulada, que era usada pelos antigos para escrever sobre a camada de cera das tábulas.

Esse processo de escrita nos permite dizer que o stylus depende da tábula e vice-versa, ou seja, para que haja stylus é necessário que haja a tábula – eles existem em uma relação de dependência direta. Desta forma podemos dizer que estilo é aquilo que marca, mas que para se eternizar precisa de um suporte, precisa do outro. Talvez seja em função desta dicotomia que Buffon e Lacan tenham adotado definições diferentes para o mesmo (?) “objeto”: para Buffon “o estilo é o próprio homem” e para Lacan “o estilo é o outro”. Enquanto aquele o definiu no século XVIII este o definiu no século XX. Filhos da mesma pátria... distantes no tempo... distantes no espaço... distantes no conceito. Eu e o outro.

Buffon era matemático, naturalista, escritor e tinha uma concepção mais “egocêntrica” na definição de estilo. Podemos dizer que ele está mais para o objeto que marca do que para o objeto que se deixa marcar. Sua concepção é singular, visto que o objeto que marca é somente um e os objetos que se deixam marcar podem ser vários. Lacan, por sua vez, era psicanalista e filósofo. Tinha uma concepção “ego excêntrica” em relação à definição do estilo. Sua concepção é plural. Podemos dizer que para Lacan o estilo situa-se no objeto marcado e não naquele que marca.




De um modo geral, o projeto da modernidade dominante, assentado sobre a racionalidade de um sujeito imutável e autocentrado, tende a concordar com o postulado de Buffon. Tal concordância traz consigo (como trouxe) consequências que impactam o nosso modo de pensar o mundo. A ideia de que “o estilo é o próprio homem” termina por disparar uma busca incessante pela verdade desse homem, pela essência que o leva a ter determinado estilo, a marcar o outro de determinada forma. E essa busca é o que permitiu, com o passar do tempo, a construção de um “mito do autor”, isto é: o estilo de um autor é algo próprio e toda a apreciação de sua obra – muitas vezes ajudada por exegetas – passa pelo autor e não pela obra em si mesma e, menos ainda, pelo leitor/consumidor, etc.

Implicitamente (ou não), tais noções deixam margem para a atuação dos críticos literários e de arte em geral, os quais reuniriam as condições para fazer a correta análise das obras de arte – inclusive textos literários –, reconhecendo nelas as características do estilo de um autor X e não as do estilo de Y. A mesma percepção pode ser estendida para a moda. Para usar os termos de Monteiro Lobato em seu célebre artigo acerca da exposição de Anita Malfatti (1917), os críticos, diante de uma obra de arte:

Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e subintenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta. No fundo, riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos. (LOBATO, s.d., não paginado, grifos nossos)

Ainda apoiados nas formulações de Buffon e de Lacan e aproveitando a imagem fornecida pela origem do termo estilo, constatamos que, em verdade, as duas concepções de estilo não são excludentes, mas, antes, complementares: “Eu” tenho um estilo que marca o outro, mas, ao mesmo tempo, sou marcado pelo outro. Estabelece-se assim um jogo entre alteridades. Da multiplicidade de estilos que convivem e se afetam simultaneamente, temos uma concepção de estilo que se faz comum a todos que podem se encontrar em determinado espaço e tempo. Neste enquadre, é possível entender as generalizações que conhecemos como: “estilos de época”, na Literatura, “estilo de vestir”, na moda, “estilo de jogar”, no futebol. No que tange ao presente trabalho, nos interessa observar como, na indústria da moda, há uma nítida tentativa de se justificar e valorizar aquilo que ainda está sendo gestado através de um discurso que se apoia no “mito do autor”. A este respeito é interessante notar que o especialista em moda – cuja função se assemelha à dos exegetas dos textos literários – é tratado por estilista.

Com respeito a essa mitologia, é preciso destacar que sua validade já vem sendo questionada há algum tempo por teóricos e autores da área de Literatura. O conto (conto?) Pierre Menard, autor do Quixote, do escritor argentino Jorge Luís Borges, é sintomático desse questionamento.

Constituído por um “arremedo” de ensaio no qual se comentam as obras que teriam sido deixadas por Pierre Menard, o conto nos expõe a mais audaciosa das empresas deste autor fictício: a re-escrita do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Mas tal obra é composta com as mesmas palavras de Cervantes. A diferença está no significado que tais palavras tinham no século XVII quando a obra foi publicada pela primeira vez e o significado que elas possuíam no século XX. Para o ensaísta do conto, a intenção de Menard era louvável, pois este queria “continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências de Pierre Menard”. (BORGES, 2007, p. 39) Um leitor que chega à obra através de suas próprias experiências, sendo ele mesmo, certamente não necessita do amparo da crítica ou de aprofundar-se no conhecimento dos detalhes biográficos ou das possíveis intencionalidades do autor. O mesmo entendimento se aplicaria a alguém que passa a escolher o que vestir de acordo com suas experiências, negando a necessidade da função do estilista.

Apesar da problematização a que este conceito é exposto, as chamadas “tendências da próxima estação” são o exemplo mais contundente de como ele não foi verdadeiramente superado. Ou seja, nota-se que a dicotomia stylus/tábula ainda está presente no discurso sobre moda. Quando o estilista diz, por exemplo, que “a tendência para o próximo verão são as camisetas mais cavadas e de cores claras” ele está realizando, ao mesmo tempo, dois movimentos: o primeiro é o de validação de suas produções junto ao público através de um discurso que, teoricamente, não é seu. Exegeta de um autor informe (as tendências), o estilista tem liberdade para declarar o que as pessoas podem ou não vestir. O segundo movimento é o de, dissimuladamente ou não, afirmar seu próprio estilo, fazendo com que ele seja, na verdade, o estilo da próxima estação.

Como bons profetas (o estilo é outro) eles se tornam oráculos (o estilo é o próprio homem). Como senhores do destino, determinam o que será consumido ainda que não seja tão consumível assim.

Cumpre destacar que parte do êxito dessa estratégia se deve não apenas à permanência de um “mito do autor”, mas também à necessidade que a maioria dos sujeitos tem de se apresentar em conformidade com a “coletividade”, valorizando quem ele é e, ainda mais, como ele está frente ao outro.

Depreende-se, pois, que na indústria da moda a noção de estilo não parece ter a pretensão de marcar no tempo – como em tese teriam essa pretensão os escritores, que podem entrar no cânon literário –, mas marcar no momento, de modo muito mais efêmero.

Nota-se esta nuance pelos sites, revistas e propagandas do setor de vestuário, assim como pelos desfiles de moda, área que está no ponto mais alto do panteão do consumo.
Fica claro, pois, que as noções de estilo e tendências (palavras usadas algumas vezes de modo indistinto) são, no discurso sobre a moda, como um camaleão – mudam a todo o instante ao sabor das circunstâncias. Sendo assim, restam dúvidas se a palavra “estilo” ou qualquer outra a ela equivalente seria a mais apropriada para definir os fenômenos mercadológicos que estão por trás do discurso sobre a moda.

O que não deixa margem a questionamentos, é o fato de os “estilistas” exercerem o papel farsesco de exegetas das tendências, valendo-se de uma mitologia do autor, que ainda mantém influência sobre uma camada da população.

Notas:

[1] Texto originalmente produzido para avaliação na disciplina de Estilística, do curso de graduação em Letras da UFJF. Contamos neste trabalho com a parceria do também graduando Manoel Messias da Fonseca, a quem creditamos a co-autoria do trabalho e dirigimos sincero agradecimento.


[2] Crédito da imagem: http://www.escolademoda.net/salavirtual/

Referências:

BORGES, J. L. Pierre Menard, autor do Quixote. In: BORGES, J.L. Ficções (1944). tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2007

MONTEIRO LOBATO, J.B. Paranóia ou mistificação. [Versão eletrônica]. Disponível em: <http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/paranoia.html > , acesso em 08 de julho de 2011

Um comentário:

  1. Este trabalho foi o ponto culminante da matéria de estilística. Faço reverências aos nosso Prof. Dr. André Monteiro Guimarães Dias Pires.

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