quinta-feira, 30 de agosto de 2012

No apagar das luzes de agosto: comentário sobre o centenário de Nelson Rodrigues através de dois mitos revisitados

O ano de 2012 tem sido pródigo em comemorações para os amantes da Literatura Brasileira: 110 anos de Carlos Drummond de Andrade (lembrados pela homenagem recente na Flip), 120 anos de Graciliano Ramos (a serem celebrados - talvez - em outubro) e, neste mês de agosto que vai findando, os centenários de nascimento de três escritores - Jorge Amado, Lúcio Cardoso e Nelson Rodrigues.

Embora a revista tenha dedicado algumas linhas aos dois primeiros, a efeméride do dramaturgo (23/08) nos passou em branco, sem uma postagem que deixasse registrado que nos lembramos da data. Não vou me alongar fazendo o mea-culpa de sempre e que os habitués deste espaço já conhecem. Falemos de Nelson Rodrigues; será mais proveitoso.

Ao invés de brindar aos leitores dados biográficos ou uma lista de obras do autor, coisas que, suponho, poderão ser encontradas com facilidade na rede, optei por falar do escritor através de dois mitos que rondam a sua figura. Bom, os mitos que eu conheço ou ouço falar, obviamente e que podem parecer obviedades ululantes a muita gente. É uma abordagem pouco convencional talvez, mas ganha uns pontinhos em sinceridade e espero que desperte um mínimo de interesse.

Mito n° 1. Nelson Rodrigues não é um autor para crianças, mocinhas casadoiras ou pessoas "de família".

Parte dessa opinião deriva do choque causado pelo modo algo cru com que o autor retratou certos temas e problemas da vida doméstica, focalizando muitas e repetidas vezes as taras e desejos que convém, por amor às aparências, esconder. Além disso, o teatro, as crônicas e demais textos de Nelson Rodrigues não são "para rir", como muitos costumam esperar na terra brasilis.

Em entrevista de 1973, concedida ao Jornal Última Hora, o autor reage à posição da censura, que vetava ou impunha cortes às suas obras sob a alegação de que elas induziam ao sexo e à violência, posição que o "senso comum" endossa(va). Diz o autor: "Não inventei nenhum dos dois. O sexo e a violência existem e aí estão para quem quiser confirmar (grifo meu). Se tomarmos ao pé da letra esta afirmação dos egrégios censores, tudo poderá ser proibido; assim, Branca de Neve poderia induzir à dissolução da família e à violência, o Pequeno Polegar poderia induzir ao homicídio ou à violência dos menores contra os maiores."

Em tempo: no ano de 1996, quando foi posta no ar pela primeira vez a adaptação televisiva de A vida como ela é (que a Rede Globo começou a reprisar no último domingo, 26/08, diga-se de passagem) eu era apenas um menino de 10 anos de idade. Mandamento óbvio à criança que eu era: saia da sala. Desnecessário dizer o quanto esse tipo de coisa influi na formação de alguém.

Mito n° 2. Diagnosticando o "complexo de vira-latas", o autor criou um paradigma na cultura nacional

Em 1958, em uma crônica esportiva publicada antes do embarque da seleção brasileira para a Copa do Mundo da Suécia, o jornalista Nelson Rodrigues defendia a seguinte (e incômoda) posição:

Por "complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. 
Essa assertiva se relacionava, segundo consta, com a histórica derrota do escrete canarinho na final da Copa de 1950, ocorrida em pleno Maracanã. Embora Nelson destaque que esse "complexo" se manifesta "sobretudo, no futebol", é justo aí onde menos se fala no assunto. Para as gerações mais novas (de novo o escrevo de modo inclusivo), o Brasil é (ou deveria ser) de fato o país do futebol. Não precisa, portanto, se colocar em posição de inferioridade perante a outros países. Temos cinco títulos mundiais, não sei quantas Copas América, somos berço de craques (e de outros não tão craques assim, mas isso é outra história) e, como diz a música¹, quando o assunto é futebol  "a vida fica lá fora".

Mas, no caso da radiografia levantada por Nelson Rodrigues, a polêmica foi bem além das quatro linhas e se tornou questão de honra para o país vencer o "complexo de vira-latas" e, como diz outra canção², "dar a volta por cima", conforme pode ser lido nesta reportagem da Veja, a qual cito sem levantar juízo de valor a respeito do jornalismo feito no país. Apenas acho o texto ilustrativo do que estou comentando aqui. Com a  mesma disposição de espírito, recomendo aos leitores este outro texto aqui: http://placar.abril.com.br/copa-do-mundo/uruguai/obdulio-varela/materias/n-rodrigues-e-o-complexo-de-vira-latas-benedetti-e-a-maracanizacao.html

Estou dizendo que as discussões em torno ao "complexo de vira-latas" constituem um mito que tangencia o autor em causa porque elas tomaram uma proporção que o próprio escritor talvez não tenha previsto ao redigir sua crônica esportiva há mais de meio século atrás.

Não vou alongar-me muito mais. O fato é que a figura de Nelson Rodrigues sempre se viu cercada por polêmicas, sobretudo por conta dos aspectos pouco elogiáveis de nossas personalidades que ele fazia questão de ressaltar em suas obras, aí incluído o tal "complexo de vira-latas". Desconfio que muitos (eu próprio, inclusive) conhecem apenas o personagem Nelson Rodrigues, mantendo distância ou pouco contato com a produção do autor e sem receber grandes estímulos para isso. Aliás, pode ser que o escritor Nelson Rodrigues tenha contribuído, ele próprio, para a construção de uma mitologia ao seu redor.

Como afirma Yan Michalski em crítica de 1967, "depois do escândalo literário provocado, na época, por "Álbum de Família", o autor pouco mais tem feito do que procurar manter incólume a imagem que a opinião pública formou a respeito dele, continuando a indignar aqueles que se sentiram indignados com 'Álbum de Família' e continuando a corresponder à admiração daqueles que admiraram 'Álbum de Família'." (grifos meus)

No mesmo texto, Nelson é definido como autor com "talento para o desmedido", dotado de uma "exuberante imaginação para a criação do detalhe monstruoso" e de um senso de humor particular, "baseado na exaltação do grotesco". Independente dos atributos, Nelson Rodrigues é um autor que merece ser lido e suas peças deveriam ser postas em cena mais vezes. Existem mitos demais e preservação da obra e da memória de menos em torno da sua figura.

Notas:

1. Aqui é o país do futebol, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
2. Volta por cima, de Paulo Vanzolini

Créditos: 

* da foto de Nelson Rodrigues exposta aqui: http://www.globoteatro.com.br/bis-1282-nelson-rodrigues.htm
* das entrevistas e críticas citadas: http://www.nelsonrodrigues.com.br/ 

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