domingo, 8 de maio de 2011

Conto: Ao diabo com a Burocracia, de J. Neander

Ao diabo com a burocracia!

O marido está em viagem a serviço ao Rio de Janeiro. Todos os dias à tarde liga para sua amada mulher. Para conversar com ela, para ouvir sua voz, segredar umas palavras carinhosas no seu ouvido, lhe contar o que se passou durante o dia.
   Você não pode imaginar o que hoje me aconteceu na caixa do Ministério.
   Deus queira que nada de mal!
   Nem pensar! Ouça lá! Fui ao guichê para receber a restituição das minhas despesas. O funcionário me deu cem reais a mais.
   Que cachorrão! Assim se enriquecem com os pobres concidadãos!
   Naõ me deu de menos—de mais!
   A sério? Então, isso é outra coisa. Uma nota de cem reais?
   É.
   Oxalá você não a tenha devolvido.
   Você sabe que sou um homem honesto.
   Quanto às coisas financeiras, julgo que sim . . .mas quanto às mulheres . . .
   Elas não fazem parte do tema. Então, eu quis devolver os cem reais . . .
   Você voltou ao guichê e devolveu a nota ao funcionário, né? Ele agredeceu a você efusivamente. Beijou suas mãos e seus pés.
   Não foi tão fácil. Tive de entrar na fila outra vez para aqueles que esperavam não fazerem alvoroço.
   E depois?
   Ao chegar à janelhina, o funcionário já não estava. Havia ido embora para tomar seu café.
   É um direito garantido pela Constituição.
   Ao que parece, sim. Voltei mais tarde, mas a fila havia aumentado. Outra vez tive azar. Encerraram o plantão há poucos minutos antes da minha vez.
No dia seguinte, o marido continua a contar.
   Voltei ao caixa do Ministério. Entrei na fila. Esperei. Mais de meia hora. De novo tive azar. No guichê de ontem, outro cara estava no serviço. Disse que não podia aceitar o dinheiro.
   E por quê?
   Disse que aquilo era «uma pagadoria e não uma recebedoria». Se eu quisesse de­volver o dinheiro teria de fazê-lo num guichê da recebedoria.
   Há muito eu me teria resignado!
   Eu ainda não. Me dirigi à recebedoria e me pus na fila de lá. Ao chegar a minha vez, o figurão atrás do vidro me disse que não se tratava dum pagamento, mas de uma devolução, e que isto era «um processo administrativo diferente».
   Eu, no seu lugar, lhe teria dito «Vai-te lixar! » e teria saído. Com o dinheiro, claro.
   O burocrata exigiu de mim que apresentasse «uma guia de pagamento» pelo dinhei­ro recebido a mais. Mas onde tiraria uma guia dessas? Se o tipo pensou, a sério, que seu colega da pagadoria havia confirmado por escrito que me tivesse dado cem reais a mais? Que estupidez!
   Não disse para você que era melhor não dizer nada e simplesmente ficar com os cem reais? Bastariam para comprar uma lembrancinha interessante. Em vez de tentar devolver, de se chatear com funcionários burros e de perder tanto tempo.
   Uma lembrancinha . . . eh . . . hum . . . boa ideia.
   Você nunca pensa em uma lembrança para sua mulher quando está no Rio. Mas talvez você viva pensando em «uma coisinha« para apanhar uma das gatinhas de Copacabana, hein? Elas são vistas na televisão, por toda a parte na orla, seminuas, à procura de homens sozinhos!
   Elas não me interessam não. E será que você poderia se limitar ao assunto uma única vez? Então, perguntei ao figurão o que me aconselharia. Ele disse que sem guia naõ podia fazer nada, que eu tinha de entregar os cem reais ao chefe da seção, e que o chefe ia resolver o assunto.
   E resolveu?
   Sei lá. Talvez, se ele não tivesse já saído. Mas a secretária marcou uma hora pra mim. Para amanhã.
   Que secretária?
   Do chefe da seção. Uma moça bem simpática e prestativa.
No dia seguinte, a mulher abre a conversa.
   Você já comprou a lembrancinha?
   Qual lembrancinha?
   Você prometeu me trazer uma lembrancinha do Rio. Já não se lembra?
   Não prometi nada a você.
   Você disse que pelos cem reais se podia comprar «uma lembrancinha interessante».
   Me lembro que foi você que disse.
   O que é que você deu à secretária tão «prestativa» para ela marcar uma hora oportu­na pra você com seu chefe? Ela tem pernas bonitas? E um decote grande? Diga!
   Seus ciúmes me matarão um dia! Regressemos ao tema. Eu fiz questão absoluta de devolver os cem reais. Afinal de contas, esse dinheiro não era meu. Precisei, no en­tanto, esperar mais de meia hora antes do grande chefe se dignar a me receber.
   E você esteve na recepção, a sós com a secretária tão «simpática». Tá legal! Que olhos tem ela?
   O chefe me disse para redigir um ofício historiando o fato e devolvendo o dinheiro. Me perguntou, além disso, quem me tinha enviado a ele.
   Hein? E depois?
   Se enfureceu muito com ele e quis que eu me dirigisse ao coitado para lhe dizer «para deixar de ser besta», com os parabéns do chefe mesmo.
   Você o fez?
   Tô louco? Não o fiz não. Eu disse que não tinha nada com essa briga, que só queria fazer logo o ofício para poder voltar o mais rápido pro meu trabalho.
   Foi mais que horas. Certamente estavam à espera de você há muito.
   Acho que sim. Mas o chefe disse que não era tão fácil, que tudo devia seguir pelos trâmites legais, e que eu tinha de «dar entrada no protocolo», quer dizer, preencher uma grande quantidade de impressos e esperar pela decisão da repartição superior.
   Meu Deus, que absurdo!
   Sim, sim! Por maior que tivesse sido a minha teimosia, agora ela teve fim. Disse com meus botões «Ao diabo com a burocracia!» Saí, dirigi-me para o guichê onde tinha recebido o dinheiro, fiz da nota de cem reais uma bolinha, a atirei lá dentro por cima do vidro e fui-me embora.
   Sua honestidade nas coisas financeiras um dia nos porá na miséria! A propósito, vo­cê ainda não respondeu às minhas perguntas sobre a secretária!

Joachim Neander: Nasceu em 1938. Matemático (Diplom em 1962) e historiador (doutorado em 1997). Trabalha por conta própria como tradutor literário e escritor científico especializado no Holocausto. Mora na Polônia e já escreveu cinco livros bem como muitos artigos para jornais históricos. Em outubro 2010 publicou, em Cracóvia, o livro de poesia, contos e ensaios em polonês Nocne widma (Fantasmas noturnos).

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