domingo, 8 de maio de 2011

Poesia: A Vida do Mendigo, de Emerson Ferreira

A Vida do Mendigo


Sentado no chão
Na porta da igreja
Havia um olhar naqueles olhos
embora fosse indiscernível
Um cheiro cáustico agredindo
os olfatos sensíveis de gente insensível
Mas não há como culpá-los
O cotidiano é insensível
A vida mesma o é
E aquele cheiro cáustico...
Insuportável!

Certamente um corpo havia
Mais que pobre
Mais que miserável
Quase inumano
Quando mesmo a humanidade termina?
Seria aí,
quando ninguém te pode desejar?
A piedade me engasgava
Parava-me à garganta como fumaça intragável
E uma lágrima impotente escorria
seguida de outras...
A pele e os trapos são um só naquela fisionomia triste
Mas é ridículo que eu chore
Ele mesmo não chora
Não o vi chorar
Deveria rir de mim e dizer-me:
Piedoso impotente,
pro inferno suas lágrimas!
Sim,
pro inferno nós dois!
Assim terei o meu descanso
e você retoma a sua vida
como, aliás, o fará
dentro instantes

Mas não lhe ocorreriam essas palavras
E nem esse tom audacioso
Sua pele grossa
Seu rosto sujo
Seus pés cascudos
calçando chinelos gastos
E se Van Gogh o pintasse...

Seus lábios secos
Sua boca muda
Sua blasfêmia abafada
E se Drummond o dissesse...
Ainda assim indiscernível

Desconheço sua dor
Suas manhãs
Seus fins de tarde
Seus céus noturnos e suas bocas de lobo
Suas calçadas
São todas alheias a mim

Sua cachaça
Seu chão frio
Seus papelões
A madrugada
O desprezo dos que passam,
o medo das crianças,
não cortam a minha carne

Se ele nos odeia
Se ele nos perdoa
Se a sua boca amarga
Se é João ou José

Resta pouco entre nós
além de um silêncio expressivo
Sua miséria é toda um mistério
Ele passa sobre mim um olhar passivo,
displicente e manso
Há algo de cinza no castanho dos seus olhos
Uma camada cinzenta
Nossos olhares se cruzam
Ele sabe que o observo,
mas não afeta a sua mansidão
Parece permitir-me
Tenho mesmo a impressão de que diria:
Contempla!

Audacioso e digno
Sua existência toda é um mistério
Um mistério miserável

Emerson Ferreira Rocha: Doutorando em Sociologia pela UNB.

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