domingo, 8 de maio de 2011

Conto: Símbolos, de Priscila Maini

Símbolos
Todos os dias eram assim. Eu acordava, fazia o café, varria, lavava, cozinhava e observava meu pai  com seu constante cigarrinho na boca a remexer a terra, ordenhar as vacas, plantar as sementes, brigar com as saúvas, larvas e arames; sempre com meu irmão ao lado, que permanecia atento e concentrado às informações que lhe chegavam. Meu pai dizia que, assim como meu avô o fizera, transformaria meu irmão em um grande fazendeiro para que pudesse tomar conta de nossas posses e terras, que hierarquicamente passavam de pai para filho em nossa família.
Aquele lugar era sagrado para meu pai, suas raízes nasceram e se firmaram ali e, em hipótese alguma, deixava nossa casa sozinha, sem seus cuidados; nem mesmo aos domingos quando todos os homens do lugarejo se reuniam no boteco ou iam para a várzea. Mesmo nesses dias, ele permanecia no quintal com seus afazeres ou relaxava por poucos minutos sentado em seu banquinho na varanda, com cigarro na boca e olhos fixos em mim. Adquiriu essa inquieta mania e isso me apavorava. O que se passava em sua cabeça me olhando daquele jeito? Nunca tive coragem de lhe perguntar ou de ao menos olhar dentro de seus olhos e tentar buscar uma resposta. Apenas abaixava a cabeça, corria para dentro de casa e agarrava a escova de cabelo de minha mãe, como se aquele objeto pudesse me proteger e reconfortar.
Era nessa hora que sentia mais a falta dela. Depois de sua morte, meu pai nunca mais foi o mesmo, passou a ter hábitos estranhos e se transformou em uma pessoa calada, triste e solitária. Não permitia a aproximação nem mesmo de meu irmão, com quem ele passava a maior parte do tempo. Quando Edgar tentava tocar em um assunto diverso, que não fosse a respeito do trabalho diário ou da fazenda, logo se mostrava irritado e rude. Nas datas comemorativas, aniversários, páscoa, natal, permanecia com a mesma frieza e nessas noites ficava em pé, sob a luz da porta, até alta madrugada como se estivesse à espera de alguém ou algo; seu único companheiro era aquele maldito cigarro que o deixava impregnado de mau cheiro. Nesses momentos, tinha vontade de abraçá-lo e dizer-lhe que mamãe estava olhando por nós e que ele era muito importante para mim e para meu irmão. Por várias vezes esse súbito desejo crescia dentro de mim, mas logo algum sentimento desconhecido me impedia e então eu corria em direção à escova.
O senhor da propriedade ao lado dizia que somente o tempo faria nós nos esquecermos da perda de mamãe. Na verdade, jamais esqueceríamos, gostaríamos realmente é que ela jamais tivesse nos deixado.
            Após a morte dela, nada naquele lugar me fascinava tanto quanto a meu irmão; afinal nossa terra não precisaria dos cuidados de uma mulher, como afirmava meu pai. Sentia-me um pouco rejeitada e imaginar passar o resto de minha vida presa àquele fim de mundo sem ter ao menos com quem conversar e sem compreender o que se passava na cabeça de papai, aterrorizava-me. Apesar de sentir imensa solidão, era impossível imaginar algo além daquelas montanhas, minha realidade se restringia a organizar a casa, pois poucas distrações e brincadeiras me restaram mediante tanta angústia que aquele local agora transmitia; diferentemente de outrora, quando mamãe e papai deixavam nossos dias repletos de alegria e diversão. Essas lembranças de infância sempre me traziam muita esperança e trazê-las de volta me enchia de entusiasmo e felicidade. Muitas vezes aquela escova de cabelo me possibilitava lembrar com maior afinco, dos momentos felizes que passáramos juntos. Mamãe adorava ficar longos minutos escovando seus cabelos e  aconselhava-me a agir da mesma maneira e, mostrando-me como fazer, acariciava minhas madeixas com zelo;  por isso a escova era minha inseparável companheira.
Devido a esse saudosismo e a esse desconhecimento do mundo fora dos horizontes da fazenda é que foi tão difícil e penoso deixar Edgar e papai, quando este decidiu mandar-me para o convento de Nossa Senhora do Carmo, na cidade de Belo Horizonte. Ao perceber que me tornara uma bela e atraente adolescente e que os peões olhavam-me com olhos desejosos, não teve dúvidas. Em um domingo à tarde, sentado em seu banco, olhando-me profundamente como de costume,  dirigiu-se a mim e anunciou que eu partiria na segunda, pela manhã. Minha reação inicial foi de felicidade, mas logo uma terrível insegurança me fez chorar como há muito não acontecia. Minha fuga foi a querida e inseparável escova de cabelos, à qual me agarrei durante toda a noite. Apesar da solidão, não saberia como agir em outro lugar, e que lugar seria esse? Choramingar não resolveu. Papai estava resolvido e já tomara todas as providências. Arrastou-me pelos cabelos para a carroça que me levaria até o convento. Em minha cabeça, as brincadeiras da infância com mamãe, as rotinas de trabalho, meu irmão e meu triste pai ficando para trás.
O início foi bastante atribulado devido a minhas limitações e à enorme saudade de minhas origens, mas rapidamente compreendi que aquele convento representava uma oportunidade única de crescimento em minha vida. Assim me esforçava ao máximo e era extremamente dedicada às tarefas que me eram ordenadas. Logo que fui alfabetizada, escrevia semanalmente cartas para Edgar e papai. Como não sabiam escrever, recorriam ao vizinho e respondiam restringindo-se a dizer que a fazenda ia muito bem. Apesar das irrisórias mensagens, ficava feliz em matar a profunda saudade e em saber que tudo corria bem.
Com o passar do tempo, adaptei-me àquela nova realidade e em meus pensamentos e orações, agradecia por meu pai ter tomado aquela atitude, afinal meus horizontes se abriram  e  me tornei uma professora, que jamais se esqueceria de suas origens e de sua família. Lecionava em colégios coordenados pelas freiras e realizava trabalhos sociais para pessoas carentes.
Em uma manhã, como de costume, fui ao encontro do carteiro que me trazia as respostas de minhas saudosas cartas. Percebi que a folha estava dobrada de uma forma diferente e, ao abri-la, surpreendi-me ao encontrar uma “binga” de cigarro lá dentro, que logo joguei fora, imaginando que alguém, por descuido ou desmazelo, deixara lá. A carta tinha apenas uma frase, o que também não era anormal, mas seu conteúdo realmente me fez perder todos os sentidos. A carta trazia a seguinte frase: “Esse foi o último cigarro que nosso pai fumou. Um abraço, Edgar.”  Após alguns segundos paralisada, corri até o lixo, recuperei a “binga” e permaneci por um longo tempo a cheirá-la e a acaricia-la. Ela não mais cheira mal e nem era apenas uma “binga” de cigarro. Assim como a escova de cabelo simbolizava minha mãe, a “binga” trazia naquele momento todas as lembranças boas e saudades do passado feliz com papai.
Permaneci na clausura por um longo tempo abatida, mas o implacável tempo continuava a passar. E a cortina imprecisa das lembranças permite-me vislumbrar o passado e compreendê-lo. A velha escova, que me trazia segurança, por recordar minha mãe; fez-me perceber que, também, meu pai via-a em mim, por isso a estranheza. Como a escova, também, a “binga” de meu pai, companheira inseparável, guardada no estojo e na alma, traduz a certeza de que a vida continua a tecer as tramas de sonhos, dores e amores.
Priscila Maini Pinto: Mestre em Letras pelo CES-JF.

Contato: priscilamaini@yahoo.com.br

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